15 outubro 2008

Anormalidade

A sociedade Açoreana tem assistido, nos últimos meses, a um número anormalmente elevado de crimes de homicídio perpetrados contra mulheres. São já seis as mulheres assassinadas este ano no Arquipélago. Os responsáveis; homens com quem as vítimas tinham ou tiveram uma relação amorosa.

Se por um lado este tipo de crime é tipificado como “crime passional”, por outro, também tem relação directa com o fenómeno da violência doméstica; neste caso levada ao extremo.

Estes crimes devem envergonhar a sociedade onde ocorrem, pois são um sinal de ausência de valores, de menorização da figura feminina, de fraqueza cultural….em suma, de uma sociedade de trogloditas. Eu senti essa vergonha. Também uma enorme tristeza pelas vitimas, em especial pelos filhos. E, claro, raiva e desprezo total pelos que quiseram marcar os seus destinos, quais donos da vida alheia. Nem pensaram nos filhos. Não nos dela, mas nos de ambos.

Um drama familiar sem paralelo.

Numa época em que a Mulher se afirma nas sociedades modernas – isso, se já não se afirmou de facto –, alguns, cobardes homens, ainda teimam em vê-las com os olhos do passado, em que o simples direito de voto lhes era negado, e as fronteiras do país só poderiam ser transpostas com a devida e prévia autorização do “protector”.

Numa sociedade pequena como a nossa, a questão da malfadada honra é ainda mais sensível, podendo – como demonstram os recentes casos –, levar a situações de ciúme irracional e injustificável. Isto, porque as pessoas têm relações de grande proximidade e que se entrecruzam umas com as outras, dando origem a afinidades e sentimentos de pertença, que são, por vezes, perigosamente amplificados. Há também a questão dos boatos, e do “diz que se disse”, que podem exacerbar sentimentos de humilhação e vergonha, numa sociedade (ainda) marcada pelo machismo. Mas, claro está, não há nada que justifique tal imbecilidade.

Lamentavelmente, há situações que, mesmo sendo previsíveis, a sociedade, digo, o Estado, não é capaz de evitar que aconteçam, pois a intenção, por si só, não é criminalizada.

No caso particular dos Açores (a realidade que eu melhor conheço) há muita gente que trabalha diariamente para que muitas mulheres não conheçam semelhante e trágico destino. Estas pessoas, que trabalham em prol da defesa das vítimas de violência doméstica, criam condições para que muitas mulheres se libertem de companheiros agressores e maltratantes, que as vitimizavam há anos, ou mesmo décadas. São várias as instituições de solidariedade social que se dedicam a esta causa, a maior parte delas ligadas entre si por uma Rede, encabeçada pelo IAS – Instituto de Acção Social.

Não tenho dúvidas que as vítimas de violência doméstica (sejam homens ou mulheres….por norma são do sexo feminino), têm, nos dias que correm, um apoio muito mais efectivo e técnico, que lhes permite abandonarem a “segurança” do lar, sem temerem as dificuldades inerentes à construção de uma nova realidade, de uma vida nova. Na vertente de apoio inicial, e definição de um novo projecto de vida, surgem os técnicos sociais, que orientam e conduzem todo o processo, inclusive a nível judicial.
As crianças nunca são esquecidas, daí existirem instituições que proporcionam, pelo menos numa fase inicial do processo, o acolhimento das mães com os seus filhos.
Tristemente, na maior parte dos casos, são as vitimas – mães e crianças –, que têm de abandonar o lar, pois o agressor mantém a sua bestialidade, dizendo; “daqui não saio, daqui ninguém me tira”………bem, isso será verdade, até Decisão Judicial.
A força e a vontade que muitas mulheres demonstram quando, finalmente, se sentem preparadas para abandonar uma relação de violência e medo, são das próprias; mas a coragem, essa, é-lhes fornecida pela certeza do apoio de muitas outras mulheres e homens que se dedicam, dia após dia, a esta problemática e à defesa destas vítimas.

Temo, pois, que numa sociedade algo fechada, e ainda muito patriarcal, as vontades das vítimas acabem por ser sonegadas pela loucura definitiva dos agressores, incapazes de aceitar a “alforria” das mães dos seus filhos.

Para que tal não suceda, é necessário continuar o bom trabalho que se tem vindo a desenvolver em prol das vítimas, mas é necessário, também, um investimento simultâneo na recuperação dos agressores, para que estes não passem à condição de “assassino passional” (*).

(*) – Considero o adjectivo “passional”, uma ofensa para a vítima, pois o dicionário descreve-o como: “ referente a paixão; motivado pela paixão”. Quem Ama, não mata o objecto do seu Amor.

4 comentários:

Anónimo disse...

Tudo uma cambada de putchas...

Rui Rebelo Gamboa disse...

Justíssimo salientar esse trabalho muitas vezes silencioso que essas equipes vão fazendo. Ironicamente, o seu trabalho é silencioso, mas é essencial para tirar do mesmo silêncio os abusos que são perpetrados.

Escreve quem sabe, por isso aproveito para indagar o seguinte: claro que, por via desse bom trabalho, hoje tem-se uma melhor noção dessa realidade. Ou seja, poderá parecer que há mais abusos em relação ao passado, mas o que se deve passar é que hoje as vítimas têm rosto, em oposição ao passado, parecendo, por isso, que hoje em dia há mais abusos, certo? Perguntava, portanto, se há dados concretos sobre este assunto? Pode-se dizer que, apesar de hoje em dia haver mais casos conhecidos, os abusos têm tendência a diminuir, principalmente nos casais mais jovens?

Anónimo disse...

Caro Rui,

é verdade que no decorrer do meu trabalho me deparo com vários tipo de abusos e problemas sociais, entre os quais situações de violência doméstica, embora encaminhe estas últimas para a referida "REDE".

Por não ser a minha área especifica, desconheço se existem estudos que se debrucem sobre o númeor actual, e passado, de vítimas de violência doméstica.

No entanto, pela prática e pela reflexão, aquilo que me parece é que estes fenómenos tendem a ter mais visibilidade, quer porque a sociedade está mais sensível e atento a eles, quer pq as mulheres, pela sua autodeterminação e apoios sociais disponíveis, se sentem mais confiantes para terminarem com uma relação de violência e abuso.

A emancipação da mulher a nível social, e o seu "novo" papel na sociedade, concedem-lhe mais poder, na medida em que já não são (obrigadas a ser) económicamente dependentes dos maridos, e porque as pressões da comunidade e familiares para manter o casamento, já não se verificarem (com tanta frequência).

Isso leva a que os casais mais jovens tenham tendência em assumir uma relação mais equilibrada e aberta, tendo a mulher um papel muito mais amplo; já não é só mãe e mulher. Logo, creio que a violência doméstica pode ter alguma tendência para diminuir (em termos Reais), embora estejámos agora numa fase de explosão a nível de casos denuunciados. Não só de mulheres relações de anos de sofrimento, mas tb algumas mais jovens que não deixam arrastar, no tempo, os abusos do marido/companheiro.

Não nos esqueçamos que, ainda há uma década atrás, se uma mulher se deslocasse a uma esquadra da PSP, para efectuar uma denúncia de maus tratos contra o marido, muitos dos agentes tinham
tendência em "encaminhá-la" para casa, para junto do "chefe de familia". O velho provérbio: "entre marido e mulher, não se mete a colher".
Só há alguns anos é que o Legislador considerou estes crimes de maus tratos como "crimes públicos", o que possibilitou que a denúncia fosse feita por qq cidadão que tivesse conhecimento ou presenciasse uma situação de maus tratos.
Nos dias que correm, qq esquadra da PSP conhece bem os procedimentos a tomar perante uma situação semelhante.

Mas, infelizmente, ainda há homens jovens que "teimam em vê-las com os olhos do passado"...

Muita há, portanto, ainda a fazer.

Anónimo disse...

Olá Pedro! Tens toda a razão, quem ama não mata!

Beijinhos,

Helena Costa