17 maio 2009

Abstenção militante ou cobardia política?

Portugal é um país engraçado. É engraçado por se sentir eternamente adiado; é engraçado porque cada cidadão sente que não ocupa o devido lugar ou não sabe como chegou ao lugar que ocupa. Como escreveu Fialho de Almeida " mais raras ainda parecem dignas do destino a que foram erguidas ".

Nessa medida, são os políticos, por razões óbvias, que estão mais sujeitos a este olhar e ao escrutínio público, facto que, por si só, os deveria imediatamente auto-responsabilizar não só no sentido de bem exercerem os cargos para que foram eleitos, mas, sobretudo, e previamente, se serão capazes de exercer dignamente os mesmos. Entre outros aspectos, esta dignidade no exercício de um cargo político implica sempre a capacidade de ter uma opinião, ser capaz de a defender e, não menos importante, ter capacidade de decidir e de assumir a decisão, qualquer que ela seja. Se um eleito não possuir estas características mínimas, sou incapaz de perceber, sem especular, qual a razão que o levou a aceitar o exercício de um cargo que implica sempre a tomada de uma decisão.

Por outro lado, revela-se igualmente engraçada a forma como os partidos escolhem aqueles que pretendem mostrar aos eleitores como sendo os portadores daquelas qualidades supremas que sejam distintivas o suficiente para conseguir captar o voto fundamental. Por norma, escolhem, para cabeça de lista, um nome suficientemente conhecido junto dos potenciais votantes, cujo prestígio pessoal se sobreponha ou possa ser sobreposto ao do próprio programa eleitoral e, além disso, possa dar alguma credibilidade política à maioria dos restantes elementos candidatos, virtualmente ilustres anónimos, e cuja escolha se revela sempre um mistério mais insondável que os desígnios do Senhor.

Eleitos todos e ultrapassado o deslumbramento, depressa, os mais ingénuos, descobrem a democrática disciplina partidária que os obriga a votar, não segundo a sua vontade, mas, sob apertada vigilância, segundo os cânones pré-estabelecidos pela direcção do respectivo partido.

Se, de uma maneira geral, tal não faz grande mossa, até porque se supõe que todos estarão basicamente de acordo nas matérias em discussão (obviamente por serem do mesmo partido), já o mesmo não se passa aquando das chamadas matérias de consciência. Aí, espera-se que todos e cada um, perante a eventual liberdade de voto, assumam a sua individualidade, antes diluída, e cumpram o que se lhes exigiu quando foram eleitos: decidir exclusivamente com fundamento nas suas próprias convicções.

É nestes momentos que os ilustres anónimos poderão libertar-se de tal espartilho, ao assumirem clara e frontalmente uma opinião que pode ser diferente ou igual à dos restantes mas que tem, agora, o cunho da pessoalidade. Rarissimamente, mas, nestas alturas, há ilustres anónimos que se distinguem pela certeza e pela clarividência na expressão do seu voto, tornando-se, por isso mesmo, politicamente credíveis. Depois, há os restantes anónimos, que anónimos continuarão, felizes com o lugar que lhes coube em sorte na elaboração da lista de candidatos.

Pelo meio, os eleitores, habitualmente divorciados daquilo que se passa nestes centros de decisão, mostram-se mais atentos, até porque, nestes casos de liberdade de voto em matéria de consciência, sempre poderão tentar perceber e conhecer aqueles que presumiram perceber e conhecer nos discursos que encheram as ruas de promessas.


A alma do eleitor busca apenas uma ideia, uma simples palavra idiossincrática, que a leve a ter fé naqueles que se apresentaram como sendo os arautos da mudança, querendo ver neles rostos de coragem e de capacidade de decisão que possam transformar a eterna esperança em certeza efectiva, com isso esperando, independentemente daquilo que decidirem, que, pelo menos, decidam, sem concessões, dada a tão propalada liberdade de voto.

Por isso, certamente sentir-se-ão traídos e frustrados, quando algum dos seus eleitos, ilustre ou anónimo, se revela incapaz de demonstrar que pensa e é capaz de tomar uma decisão por muito impopular que ela seja, sobretudo se a respectiva opinião e consequente voto sejam decisivos para a eventual aprovação da tal matéria de consciência, ainda por cima com o agravante recurso a expedientes de desresponsabilização pessoal que roçam o patético.


Depois de tudo isto, hipocritamente, há sempre uns quantos, desta feita normalmente ilustres, que se manifestam desolados pelo agravamento do divórcio entre eleitores e eleitos e o lógico aumento da abstenção. Afinal não era isto que eles pretendiam quando por cobardia política se mostraram incapazes de decidir?

3 comentários:

Pedro Lopes disse...

Caro José,

esta tua reflexão, certamente (digo eu) tem por base a recente votação na ALR a propósito da possibilidade de introdução da "Sorte de Varas" nas touradas em praças Açorianas.

Obviamente não se esgota neste tema, pois muitas outras questões de consciência, são alvo de votação parlamentar.

Concordo na integra com este teu post, pois é nestas alturas, em matérias sensíveis e potencialmente impopulares, que se pode aferir da rectidão de um parlamentar.

Felizmente - pelo menos para nós que nos manifestamos contra esta tortura descabida -, houve deputados que votaram, de facto, em consciência, sem subordinações ou espartilhos de qualquer ordem. Esses poderão estar de consciência tranquila, embora os que votaram a favor, se sintam, alguns, também aliviados.....

cumprs.

Toupeira Real disse...

e o deputado desaparecido em combate, onde anda? Estava doente? entrou algum atestado médico na ALRA? Vai demitir-se por razões pessoais e de de força maior ?

José Gonçalves disse...

"...sobretudo se a respectiva opinião e consequente voto sejam decisivos..."
Claro que onde escrevi sejam queria escrever forem. As minhas desculpas pelo erro.