Confesso que
há muito tempo não tinha grande apreço pelo Tribunal Constitucional. Mais, em
círculos próximos, já tinha manifestado que talvez fosse melhor a criação
de uma secção no Supremo Tribunal de Justiça com as suas atribuições, tal a
perceptível politização e, acima de tudo, o descrédito na escolha dos juízes a
que a Assembleia da República o tinha remetido e que era sentido pela população
em geral. Tudo sem embargo de algumas dúvidas comummente subsistentes naqueles
que trabalham na área da Justiça, designadamente a possível exposição a
excessiva judicialização, que poderia corporativizar (jurídica e
funcionalmente) a sua própria actuação, subvertendo o efeito pretendido. Caso,
pois, bastante discutível e para interminável discussão, de afastar por agora.
Foi, pois, com agrado que, face à
luz da Constituição vigente, vislumbrei algum senso jurídico aquando do recente
acórdão sobre a inconstitucionalidade do corte nos subsídios dos funcionários
públicos, pensionistas e reformados, mesmo que o ache juridicamente aquém da
fundamentação essencial para a sua total inexpugnabilidade (pelo contrário,
pontapeando-a duma forma com consequências imprevisíveis). Com efeito, o
recente acórdão não pode deixar de ser cruzado e entendido sem referir o acórdão
que não considerou inconstitucionais os cortes nos vencimentos dos mesmos
intervenientes.
Sem
aprofundar tecnicamente, para melhor entendimento, e até porque não sou
constitucionalista, façamos uma explicação geral das razões essenciais para as
respectivas conclusões.
O acórdão nº
396/2011 assentou a fundamentação de não inconstitucionalidade dos cortes nos
vencimentos dos funcionários públicos na ideia geral de que o desequilíbrio
financeiro do Estado era de tal forma grave e insustentável que punham em causa
no imediato a sua solvência e capacidade para cumprir os compromissos
financeiros assumidos interna e externamente. Estado de necessidade puro e
imediato que inculcou a opção política de que tal só poderia ser eficazmente
combatido com a redução imediata dos vencimentos.
No fundo, legitimou-se o corte
(parcial) nos vencimentos para impedir a incapacidade total para pagar o que
quer que fosse, incluindo a totalidade dos vencimentos.
Contudo, a
admissibilidade de tais cortes assentou sempre no seu carácter excepcional,
transitório e limitado no tempo – o da duração do acordo tripartido.
Do mesmo
modo, ainda que admitindo que tais medidas resultariam em benefício do
interesse comum e geral de todos os cidadãos, foi aceite a exclusão de todos os
que não eram funcionários públicos do pagamento dos encargos públicos (gerais e
universais, logo, também dos privados), avançando a premissa de que a aplicação
universal traria graves prejuízos económico-sociais, cabendo, por isso, ao
poder político a escolha (política) sobre quais as medidas apropriadas para
minorar/adequar os efeitos colaterais se aplicados a todos ou apenas a uma
categoria de contribuintes.
Por tal, assentou que “quem recebe por verbas públicas não está em
posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional
que é exigido a essa categoria de pessoas –vinculada que ela está, é oportuno
lembrá-lo, à prossecução do interesse público - não consubstancia um tratamento
injustificadamente desigual.“.
O acórdão nº
353/2012 consignou que os cortes nos subsídios de Natal e de férias seriam
admissíveis com os mesmos fundamentos de necessidade e premência no combate ao
desequilíbrio das contas do Estado, ora agravados pela detecção, em 2011, de
desvios orçamentais que comprometeriam o acordo tripartido, bem como pela
imputação específica, assentando na ideia de que haveria maior estabilidade e
segurança no emprego no sector público do que no privado.
Deste modo, cortar tais subsídios
seria para os funcionários públicos bem menos oneroso do que uma nova afectação
da estabilidade remuneratória, já ela desestabilizada pelos cortes salariais e
pelo congelamento dos vencimentos desde 2010.
Assim,
tornariam a ser imputados a uma categoria específica de pessoas (os
funcionários públicos) os custos dos encargos públicos, excluindo-se novamente
os trabalhadores do sector privado.
Só que,
desta vez, e atentando-se ao facto de que tais subsídios constituem também
remuneração, atentando-se ao facto de que as remunerações dos funcionários já
foram igualmente afectadas, não só pelo respectivo corte mas também pelo seu
congelamento e, ainda, pela perda significativa de poder de compra resultante
desses factores e da própria inflação levam a que “nenhuma das imposições de sacrifícios descritas
tem equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos
provenientes de outras fontes, independentemente dos seus montantes.“.
A desproporcionalidade e
discriminação em relação aos restantes cidadãos (sector privado) para o
pagamento dos encargos públicos é de tal ordem que torna intolerável e
injustificável a imposição de sacrifícios deste teor àquele conjunto de
cidadãos (os funcionários públicos). Tanto mais que decorrem do próprio
memorando de entendimento outras possibilidades para diminuição da despesa e,
simultaneamente, atento o excesso da medida em apreço, outras possibilidades de
aumento da receita, através de medidas mais abrangentes e igualmente eficazes.
Daí que e “Apesar de se
reconhecer que estamos numa gravíssima situação económico-financeira, em que o
cumprimento das metas do défice público estabelecidas nos referidos memorandos
de entendimento é importante para garantir a manutenção do financiamento do
Estado, tais objetivos devem ser alcançados através de medidas de diminuição
de despesa e/ou de aumento da receita que não se traduzam numa repartição de
sacrifícios excessivamente diferenciada.”.
Porém, mesmo declarando-se a inconstitucionalidade de tais cortes, "reconhece-se que as consequências da
declaração de inconstitucionalidade acima anunciada, sem mais, poderiam
determinar, inevitavelmente, esse incumprimento, pondo em perigo a manutenção
do financiamento acordado e a consequente solvabilidade do Estado.”, pelo
que o “ interesse público de excepcional
relevo exige que o Tribunal Constitucional restrinja os efeitos da declaração
de inconstitucionalidade, nos termos permitidos pelo artigo 282.º, n.º 4, da Constituição,
não os aplicando à suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal,
ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e, ou, 14.º meses, relativos
ao ano de 2012. “.
Face à actual
Constituição, e porque outras pessoas já abordaram outros aspectos, limito-me a
observar que o Tribunal Constitucional não poderia deixar de emendar a mão,
atenta a má avaliação que fez da contribuição
para o pagamento dos encargos públicos. Se assim não fosse, seria o
seu canto do cisne, caso aceitasse a cumulação do corte discriminatório,
integral e duradouro de outras prestações para uma, e apenas uma, categoria de
contribuintes, sobretudo havendo outras hipóteses de aumento de receita e de
diminuição de despesa.
Noutro registo, nenhum iluminado da Economia
se lembrou que a função pública contribui, e muito, para o normal funcionamento
da economia privada? O senso comum demonstra-o sem rebuço; a contracção do mercado confirma-o para lá das evidências.
Pessoalmente, admito que há sectores da Função Pública que
têm gente a mais e, pior, improdutiva. Ao longo dos tempos, as admissões na
Função Pública foram em catadupa para pagamento de favores políticos e também
por causa de uma visão muito socialista do papel e da organização do Estado.
Contudo, e apesar disso, o grande mal da despesa pública não assenta nos
salários.
O inimigo do Estado chama-se
desorçamentação, a qual, ironicamente, fomenta até à exaustão.
A má gestão do
Estado está essencialmente encarnada nos Institutos Públicos (verdadeiros
cancros que assumem, duplicam e sobrepõem funções para as quais a administração
directa do Estado tem técnicos qualificados), nas empresas públicas (TAP,
CP e RTP, são péssimos exemplos), nas fundações públicas ou nas mal explicadas e pior negociadas parcerias publico-privadas, entre outras ineficiências.
Porque o Estado é um incapaz
empresarial, comece-se o corte por aí e verificar-se-à que o défice cairá a
pique, na certeza de que a ineficiência e os privilégios remuneratórios (se
estes forem o grande Satã) estão ali centrados e de que isto constitui a Fossa
das Marianas do dinheiro dos contribuintes.
Somos culpados de termos uma visão
arcaica do papel do Estado. Gostamos da sua alcofa. Todavia, o Estado não pode
nem deve ser o escopo de tudo. Justiça, Defesa, Segurança Interna e Organização
Territorial, na totalidade, Segurança Social, Saúde e Educação, em cumprimento
da estrita função social que os cidadãos lhe confiaram, é que são funções que devem
estar cometidas ao Estado. O resto...
Há alguém com coragem para reformar o Estado?
1 comentário:
Caro José Gonçalves
reconheço o esforço em se demarcar do Governo PSD/CDS de Lisboa, é sempre bem vindo, antes tarde que nunca.
Não sei se o seu texto é demasiado jurídico para o meu conhecimento, ou se pelo contrário(com a devida vénia) é um pouco confuso...
vou entrar o menos possível na técnica jurídica do texto ou do Acórdão, pois não o li, nem se calhar tenho conhecimentos para tal.
Em relação aos seus considerados sobre a formação do Tribunal(por outras palavras)de acordo.
Assim o problema é de facto do Tribunal ser de escolha politica e por isso ser condicionado as maiorias( politico partidárias) a sua escolha ou devia ser pelo colégio dos Juízes, ou pelo Supremo.
Na minha opinião, a questão é mesmo esta, este acórdão(embora com considerações positivas) é condicionado pela razão politica.
Não colhe na técnica jurídica(desculpe minha ignorância)uma suspensão da decisão tomada por razões estritamente politico orçamentais, se é aceitável como opção, o não pagamento do subsidio já cobrado(pelo eventual principio da consumação) o mesmo é completamente inaceitável em relação ao subsidio de Natal.
Seja como for o Acórdão coloca em destaque não a função pública verso os rendimentos do trabalho, privados, mas sim a aplicação harmoniosa do esforço fiscal igual para todos os rendimentos,inclusivo os de Capital ou outros.
Este será o busílis do problema para 2013, somando a este o descontentamento social e a mais difícil aceitação destas medidas que o desgaste politico da governação está a provocar no governo.
Esboça uma ideia correcta de reformulação do estado, mas este não é conseguido com a privatização das águas, da TAP, dos CTT ou de outras empresas, públicas.
Aliás será o contrário disso, pois este caminho só serviu para continuar os gestores dos Partidos invadirem estas empresas em troca de putativos favores as empresas consideradas, ou será por falta de gestores que os Chineses escolheram, Catroga e Mexia, entre outros, esta traficância de lugares entre futuros e passados ministros,para quadros de empresas privadas é bem explicado, num programa televisivo actual, onde se fala de ministros do PS/PSD/CDS.
Limpar o Estado pela qualidade da gestão sim,limpar o estado dos trabalhadores, para por gestores do Partido, não obrigado.
Limpar o estado das rendas irregulares,das parcerias público privadas, dos negócios "militares" e outros antagónicos à lei e aos interesses do Estado sim.
Reformar a organização do estado e as subvenções aos partidos, sim, transformar a democracia num feudo dos partidos X, e excluir todos os outros não.
Ai não só estou de acordo consigo que é necessário coragem para reformar o estado, como isto só será feito quando o Povo, transformar radicalmente este estado de coisas, de estarem ao serviço de alguns para serem usados e geridos em prol de todos.
Enviar um comentário