04 fevereiro 2013

O maior esforço da imaginação humana


ou A Cozinha Cristã do Ocidente, de Álvaro Cunqueiro

Se em igualdade de talento um escritor francês será infinitamente mais conhecido que um espanhol, que fará se o espanhol escrever em galego? Deixa-se este paralelo, já outrora sugerido por Ortega, à imaginação do leitor reflectido, que certamente o actualizará estendendo-o, já agora por maioria de razão, aos escritos em inglês, de que o exemplo insuperável (até ao próximo…), segundo me noticia minha avó Georgina num intervalo da enésima leitura do seu conde em que por desfastio folheou uma gazeta, será a Sr.ª E. L. James, dona de casa inglesa que se tirou dos seus cuidados domésticos, pegou em si e na pena ou tecla, e da noite para o dia botou romance que já vai em não sei quantos milhões de exemplares vendidos, desbancando olimpicamente a sua compatriota dos feiticeiros, primeiro, e a dos vampiros depois, e ameaça ultrapassar a mesmíssima Bíblia, parece que só com assoalhar a anatomia da personagem Grey em várias e mui esmiudadas posições: portanto, ela, sim, exibindo literalmente a… anatomia de Grey. E, depois de contar It’s raining men (and women), bem pode cantar It’s raining money. Sim, leitor perplexo (no melhor dos casos), ensinaram o bê-á-bá ao respeitável público, mandam boa parte dele para universidades, institutos e escolas de toda a casta e pinta, onde aguça o engenho e aperfeiçoa o gosto tirando cursos cada vez mais céleres (e celerados, rosnam os malédicos), e depois escolhe e «consome estes produtos», como agora se diz de tudo: mercearia ou poesia. «Aí tens o belo resultado de uma educação democrática», conclui minha pobre avó, com mais de dois carros de anos, mas ainda acessível ao espanto.      
            
         … Mas a resposta mais que óbvia patenteia-a o caso de Álvaro Cunqueiro, nado em Mondoñedo, Norte da Galiza, tão próxima de nós em geografia quão desconhecida em artes e letras desde os tempos idos da lírica galaico-portuguesa. Tínheis porventura, já não digo lido, mas ouvido falar de Cunqueiro? Nem eu. Corrijo: ecoava-me vagamente na memória uma referência numa das crónicas com que o anterior secretário de estado da Cultura, Francisco José Viegas, também apreciador dos prazeres da mesa, costumava ir lembrando discretamente alguns caminhos menos frequentados dos leitores e até editores. Foi o suficiente porém para que, quando numa feira do livro se me deparou o título em epígrafe entre tantos outros, pelo menos o abrisse e folheasse. E imediatamente o comprasse: já não apetecia fechá-lo, antes continuar a sua leitura em lugar retirado e cómodo para melhor a saborear e digerir, de preferência com o adjutório intermitente de um desses licores e néctares de que nela se fala, e enquanto a mão vai passeando deliciada pelo sedoso pêlo do velho gato obrigado em toda a casa.    

Porque é de um prazer que se trata: a prosa de Cunqueiro, repassada de harmonia e suavidade, sensibilidade e bom senso, temperada de ironia – «o mais perfeito fruto da humana inteligência», – mas também de ternura – timbre da grande arte, segundo Proust, – inclui-se entre as que, como as queria o nosso Eça, realizam por si sós «uma absoluta beleza». Com efeito, como resistir a uma pena que ao já quase obrigatório e cediço ateísmo opõe o fino asteísmo, ao sórdido hedonismo a clássica eutrapelia, e à ordinária aravia o estilo mais consumado?

Mas… «ternura» a propósito de uma obra sobre cozinha?! Sim, leitor suspicaz. Nesta obra deparar-se-te-ão tradições culinárias e vinícolas do Ocidente, mas também os seus fautores e intérpretes ou representantes, conspícuos uns, obscuros outros, nem todos cristãos por aí além, e outrossim a cultura, histórias e anedotas que foram tecendo, todos considerados com o mesmo olhar compreensivo, benigno e deliciado do nosso autor, que, como verdadeiro senhor à l’Ancien Régime só parece pôr reservas às demasias, – quer do rigorismo: «As aguardentes de Armagnac são como as boas aguardentes de Ribeiro. Quando Calvino esteve por lá, não provou uma única gota, e creio, em consciência, que este é um dos argumentos de maior peso contra o Calvinismo»; – quer das invencionices e assepsias modernistas: «Nos vinhos, tal como na cozinha, não se pode inovar…» «Ficámos à espera, e confiámos no seu saber culinário, no seu espírito exigente de gourmet, ramo de que estão excluídos os liberais, porque o diálogo não tem cabimento na cozinha, e é preciso ser fiel à letra, à santidade e veracidade das receitas comprovadas: por vezes, inovar num molho é como acrescentar umas pinceladas em Las Meninas» «Provavelmente o decreto é muito bom do ponto de vista asséptico, o que é culinariamente, como se sabe, um ponto de vista falso. Os excrementos de corvo do Turquistão são absolutamente necessários para fixar o almíscar, e os jane galupí dedicados ao comércio de Samarcanda consideravam que o depositado pelo corvo pela manhã nas mãos delicadas, suavizadas com gordura de galinha, das suas mais jovens esposas é que era excelente. Os sucos do estômago de uma lebre mantida com fome durante o cio eram necessários, na pastelaria bizantina, para dar à compota bizantina de cerejas esse cálido aroma que um poeta ousou comparar com o próprio perfume do amor.»

Entre essas tradições da cozinha ocidental e seus fautores, que vão do Sacro Império ao Português passando pelo país galego, merecem especial atenção do nosso autor as de França, tanto na culinária como na vinicultura. O que bem se compreende, pois, à uma «sem vinho não há cozinha, e sem cozinha não há salvação nem neste mundo nem no outro», e, à outra, de todos é conhecida e reconhecida a supremacia da mesa francesa, talvez ainda mais do que a da sua literatura. Já o advertiu o bom epicurista Anatole France: «La cuisine française est la première au monde. Cette gloire éclatera par dessus toutes les autres quand l’humanité, plus sage, mettra la broche au-dessus de l’épée.» E, ainda não há muito, E. M. Cioran, romeno e portanto com voto mais isento, atestava que aprendera duas coisas com os Franceses: a escrever e a comer. A julgar porém pelas recentes manifestações da literatura, palpita-me que a tradição se manterá já agora mais na culinária… Seguem-se pois vários capítulos, mormente sobre «os sumptuosos sumos daquelas províncias cristãs»: «A mesa do rei de França», «Apresentação dos vinhos de França», «Os vinhos do Hospital», «O tonel do rei», «O rei das adegas de França»: «Le vin est mieux qu’une boisson, c’est un dieu. Assim começa o Senhor Conde de Clermont-Tonnerre o seu elogio dos vinhos das Gálias». Destes contudo, e ao invés do que parece mais corrente, o palato do nosso gastrónomo demora-se e praz-se mais nos da Borgonha do que nos de Bordéus, como já também Guy Debord, o mentor do Maio de 68, que sabia do que falava: pois, se escreveu menos do que a generalidade das pessoas que escrevem, bebeu mais do que a generalidade das pessoas que bebem. E este vosso criado também vos pode assegurar que de uma pequena estada em Tours lhe ficou especialmente na memória e gosto um Châteauneuf-du-Pape, «o primeiro de todos os vinhos para as grandes tardes outonais, quando o vento do oeste já passeou o grande rebanho das folhas secas».

Mas também as tradições de Portugal e seus cultores: se nós desconhecíamos Cunqueiro, esse desconhecimento não é mútuo. Aí estão a comprová-lo os capítulos «…E Lisboa», «Da China para Portugal, «Teoria do bacalhau», «Tertúlia de aves para assar», e várias referências especialmente ao pescado: «Os gastrónomos portugueses sempre pretenderam que fosse concedida aos linguados lisboetas a primazia sobre todos os linguados de todos os mares do Mundo. Uno a minha voz à deles»; «Outra capitania que Portugal não cede é a do bacalhau. Quando os lugres zarpam para a Terra Nova, com a bênção do cardeal-patriarca, todo o apetite português assoma ao Tejo para lhe desejar uma pesca feliz»; «Os direitos portugueses e a primazia da cozinha bacalhoeira começam em Sebastião Palhação, o inglês, o inventor do bacalhau com natas, o rei dos bacalhaus no forno, com pão ralado, queijo e cálice de vinho do Porto. Isto e o folar de Chaves eram o que Eça de Queirós pedia para descansar das comidas puríssimas do fidalgo Galeão. Como sobremesa pedia arroz-doce com muita canela.» Mas também à doçaria: «A única pastelaria europeia que conseguiu, nos seus tempos, competir com a eslava foi a lisboeta. Ananás, canela, banana, açúcares de cana, frutas de África, da Índia e do Brasil vinham para as pastelarias de Lisboa.» Sem falta dos imprescindíveis presunto, capão e folar: «Bragança pretendeu ser uma espécie de Sedan no tempo dos Bulhões. A serrania dá-lhe uma severa e forte cozinha, uns presuntos excelentes, uns capões soberbos, gordurosos, suaves, de pernas curtas, como os príncipes de Bragança. Em Bragança bebe-se vinho da Madeira à saúde de António Nobre, o poeta que tinha os pés gelados pela Lua que ilumina a torre de Anto…»; «Camilo Castelo Branco recomendava que perante um grande capão de Trás-os-Montes, colocado no meio da sua mesa minhota, flamejado com aguardente velha que trazia no seu corpo a memória em tanino de todos os carvalhos de Portugal, úteis para navios e barricas, se fizesse mentalmente a biografia da ave, desde o momento em que o pintainho saíra do ovo até ter sido vendido na feira da Barcelos, e desde que entrava no forno até, na mesa, o próprio Camilo o trinchar…»  

Toda a iguaria porém, por mais deliciosa que se ofereça, é sempre tomada não só como alimento, mas sobretudo como ensejo de jantares e ceias conversáveis, em que os comensais prolongam os prazeres da alegre convivência e da boa companhia demorando os da mesa: «Comam pausadamente, bebam de vez em quando. Foi o meu bispo Guevara quem recomendou trazer para estas refeições familiares, como coisa boa, histórias da casa, acontecimentos de antepassados, casos da juventude dos mais velhos presentes. Tudo isso autoriza um pouco mais de vinho. E, pelo amor de Deus! mantenham-se nestes assados, contra as pílulas vitamínicas de encher com que nos ameaçam. Defendam o vaidoso pato, protejam – especialmente – a grande pintada. Exijam o capão de capoeira dourado como um lusitano… E que toda a família se sente à mesa, tão irrepreensivelmente como nos tempos antigos, quando ainda existia isso que se chama família. As duas coisas, assado e família, fazem parte de uma ordem que eu me atrevia a chamar celestial.»             

Enfim, depois de ler só estas notas sobre cozinha não parece muito a opinião da escritora brasileira Nélida Piñón, prémio Príncipe de Astúrias das Letras de 2005, num vídeo que corre no You Tube, de que Álvaro Cunqueiro compendia toda a literatura europeia, e que bem merecia ter recebido o Nobel (resta saber se o Nobel o merecia a ele…). Compêndio aliás que parece espelhado já nos próprios títulos das suas obras, quer em galego, quer em castelhano: Cantiga nova que se chama Riveira, Merlín e familia, O Incerto señor Don Hamlet, Se o velho Sinbad volvesse ás ilhas, Baladas de las damas del tiempo pasado, Las mocedades de Ulisses, Un hombre que se parecía a Orestes, Vida y fugas de Fausto Fantini della Gheradesca, etc.  
         
Leitor amigo, quando fores ou tornares pelos caminhos de Santiago de Compostela, prolonga a tua peregrinação, agora no signo da literatura e da gastronomia, até Mondoñedo, terra a que bastou ser berço de Álvaro Cunqueiro para representar a gastronomia. Gastronomia que, certo, como outras coisas da ordem dos sentidos – libido sentiendi, na expressão de Pascal, – também melhor será experimentá-la que explicá-la; mas, depois de saboreada, nada perde e muito ganha em ser assim contada e cantada.

Porque «a cozinha é o maior esforço da imaginação humana. Ninguém duvide».

5 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro

Estou deliciado com a sua escrita. Não tenho palavras para descrever a sua qualidade. Não sei quem é mas julgo que seria um prazer para os Açores e eventualmente para Portugal que publicasse livros, se o não faz já. Este seu texto e um outro que li sobre comida à volta de uma lareira são prosa que afila os dentes e o estomago de qualquer ser para um manjar e o cérebro para buscar aquilo que lê e que as editoras não nos proporcionam. Continuarei a ler com o mesmo prazer que me dedico a comer.

cumprimentos de admiração

Anónimo disse...

Obrigado. É muito amável.
Seja pelos e para os «happy few» (como Stendhal gostava de repetir, citando por sua vez do «Henry V». «Back to the classics», é o que eu costumo dizer aos meus amigos.)
LdM

Rui Rebelo Gamboa disse...

O Luíz elevou o nível da Máquina, primeiro, e da blogosfera endémica, depois, duma maneira só comparável com o susto que apanhamos sempre que vemos que o António José Seguro vai falar ;)

Anónimo disse...

Lá será certo, caro Rui, que a maquinaria universal se vai regendo e aguentando por um sistema de contrapesos e engenhos compensatórios, nem todos por igual formosos que seguros.
LdM

José Gonçalves disse...

Ah!AH! imperdível a piada, meu caro Luiz!