04 março 2013

MERCEEIROS E ESPECIALISTAS



ou O CLUBE DOS GRAMÁTICOS MORTOS


ou como vos aprouver


Mais uma vez nas suas buscas internáuticas minha avó Georgina advertiu em artigo que a impressionou (desta feita sabe-se qual: semanário Sol, 19.02.2013), mas em sentido contrário ao de «Acertar», outro dia aqui comentado, – agora por ver tachar de «merceeiros dos tempos verbais» os professores de português que ensinam gramática, comparados com o que deviam ser: membros do Clube dos Poetas Mortos. Com tão nefando ensino e método, «a disciplina de Português é um crime contra o futuro», denuncia e alerta o articulista.

«Não fui educada nessas ideias!», comenta a boa velhinha, alçando o fino supercílio.

E com efeito, chamar «merceeiros dos tempos verbais» a professores que ensinam gramática faz-me lembrar aquelas sumidades, ordinariamente economistas, que, quando um governo «ameaça» só de tentar pôr as contas em dia, logo o tacham de se limitar a fazer contas de merceeiro. Em Portugal, terra de gente altamente especializada, como oficialmente se sabe, os merceeiros parece que não andam lá muito bem vistos. Entretanto, vai dizendo e repetindo Henrique Medina Carreira, «um velho de aspeito venerando», que o que faz falta em meio de tanto especialista e tanto perdulário são donas de casa com as contas em dia.

Se o sacrossanto Jovem, como agora lhe chamam, não aprende gramática – que está para a língua, letras e humanidades como a matemática para as ciências – na escola, nunca jamais em tempo algum a aprenderá, e os resultados estão à vista todos os dias na miséria que por aí se vai gaguejando e escrevinhando na imprensa, rádio, tv e disco.

Para alguém poder esquecer a gramática, precisa primeiro de a aprender. Ora o pessoalzinho quer todo e logo ser filósofo e pensador e criativo, sem se dignar suar primeiro as estopinhas a apetrechar-se com o bê-á-bá.

Mas «a gramática vinga-se dos que a ignoram» (Lutero), e «Um homem é tanto mais livre em espírito quanto mais os seus gestos são regulados por um ritual, e a escolha das suas palavras por uma sintaxe rigorosa» (André Maurois).

Dá-se infelizmente o caso de que este ritual e esta sintaxe rigorosa não caem do céu. Aprendem-se com estudo e aplicação e mais ou menos esforço consoante as capacidades de cada aluno, – estudo e aplicação que implica sacrifício e enfado, quase por definição; e cultivam-se ao longo da vida com exercitação mais ou menos regular segundo a profissão e necessidade de cada qual.

Já a deliciosa Guidinha, que, ainda tão novinha, já sabia escrever com sujeito, verbo e caso, mas que fez a 4.ª antes do 25 do 4, se queixava de que «Nestas coisas da vida uma pessoa ou tem sorte ou não tem eu cá por mim tenho de confessar que não sou das que tiveram mais sorte e tudo porque comecei a tirar a minha instruçãozita primária antes das reformas contra-reformas sugestões de reformas propostas de reformas discussões sobre reformas questões sobre reformas estudos sobre reformas esperas por reformas e o mais que há sobre reformas e o resultado deste meu azar de ter começado a ir à escola antes de tudo isto foi que tive de estudar uma data de coisas para fazer exame da primeira classe mais uma data de coisas para fazer o da segunda classe mais uma data de coisas para fazer o da terceira classe e nem digo quantas coisas para fazer o da quarta classe para verem como as coisas eram tenebrosas até tive de aprender a ler para tirar a quarta classe o que mostra como a gente era perseguida torturada e maltratada nos tempos antigos» («Vou-me licenciar por obra e graça do Espírito Santo», in A Guidinha antes e depois, de Luís de Sttau Monteiro, 2004, p. 115; a falta de pontuação é por a Guidinha ser moderna...)

Quanto ao mais, frioleiras e votos pios da costumada bem-pensância oficial, que deu com os burrinhos na água – e na educação.

Sem comentários: