13 maio 2013

Coisas do Diabo



Obra de grande tomo, no sentido literal e figurado, com tanto que dizer a seu respeito, que a dificuldade está em decidir por onde começar. Li-o há bons vinte anos quando apareceu a edição portuguesa, a do Círculo de Leitores (minha avó integrava a seita assinante na altura). Não me deixou grande impressão; nada que se comparasse à Montanha Mágica ou aos Buddenbrooks, dois livros que muito me deram que pensar nos meus verdes anos. Só a recordação da morte do pequeno Nepomuk, de meningite, se manteve estes anos todos. Pelo contrário, lembro-me ainda, como se fosse hoje, da impressão que me fez a leitura dos Buddenbrooks, livro sobre a decadência e a desvitalização de uma família, tema que ao tempo me preocupava bastante.
Mas o Doutor Fausto reli-o agora, já com outra idade e (espero) maturidade, e outro conhecimento da música, principalmente da música de Arnold Schoenberg, o que há vinte anos me faltava. Na altura também Hugo Wolf me era ignoto, já não agora. Mas o meu conhecimento das fontes permanece incompleto: não conheço suficientemente as obras de Frederico Nietzsche, uma das personalidades que entraram na composição do super-artista alemão representado por Adrian Leverkuhn, o protagonista deste último romance de Thomas Mann.
Quando o escreveu, já Mann estava exilado nos EUA, onde se refugira em 1938, por causa da ascensão do nazismo na sua Alemanha natal. O romance foi publicado em 1947, pouco depois do fim da guerra, quando já se conhecia em todo o seu horror o que fora o regime nazi e toda a devastação que trouxera à Europa e à própria Alemanha.
Obra complexa, a exigir muito do leitor. Sabe-se como a filosofia alemã é puxada à substância, muitos dos seus representantes seguem um método expositivo tão directo como o de coçar a orelha esquerda com a mão direita por trás do pescoço, e o livro está recheado dela, mormente a primeira parte, que trata dos estudos do nosso Adriano e do seu amigo e biógrafo Serenus Zeitblom, o narrador do livro (alguém havia de ser sereno em tal história, nem que só de nome…). Toco de fugida neste particular porque sempre me fez espécie a importância que os Alemães dão à filosofia, sobretudo à filosofia idealista de Hegel, que sempre me pareceu oscilar entre o charlatanismo e o vácuo, – o que certamente permite variações e aproveitamentos infinitos, a começar pela da firma Marx & Engels. Eu bem avisei algures que sou antes homo quadratus. Já na música estarei mais à vontade: tenho ouvido não pouca...
Começa pois o livro por fazer uma reflexão sobre a natureza do mal e da sua inevitabilidade associada ao livre arbítrio e liberdade. No fundo, se bem percebi, o mal não pode estar ausente da tragédia humana (boa tirada, reconheço…). O mal mora no imo coração do homem, paredes meias com o bem: as nossas acções e os nossos instintos podem facilmente descambar para o mal.
A personagem tácita, mas sempre presente, é a própria Alemanha, que no auge do seu poder e vigor como nação deixou que o seu potencial fosse arrastado para o mal, já com a guerra, já com a queda no abismo inominável do nazismo. E Adriano Leverkuhn, por um lado personificação da cultura alemã no auge das suas capacidades e realizações, no começo do século XX, por outro é uma figura compósita: três artistas cimeiros da cultura alemã participam na sua composição, que também reflecte o declive, mais ou menos assolapado, do próprio autor para the love that dare not speak its name, como o baptizou Lorde Douglas, autoridade na matéria. Durante o último século, artista ou intelectual moderno que se prezasse reunia em si de ordinário um de três atributos pelo menos: judeu, comunista ou cultor do dito.   
No trio inspirador, desde logo Hugo Wolf, citado logo no princípio. Wolf foi essencialmente um compositor de lied, género alemão por excelência e por onde Leverkuhn começou. Além do que a história pessoal de Wolf e de Leverkuhn têm muitas semelhanças: a infecção de sífilis, a loucura progressiva, própria da doença, e a morte aos quarenta e poucos anos. Hugo serviu certamente de modelo a Adriano.
Outro fatal participante na composição da personagem é Nietzsche: a cena final do livro, em que Adriano, fulminado pela loucura e tornado à inconsciência original, é acolhido pela mãe como uma criança de colo, parece copiada a papel químico da vida do filósofo de estilo retumbante, ele próprio melómano e também compositor (a sua música está disponível em linha).
O terceiro foi Arnaldo Schoenberg, que não era alemão, mas austríaco e judeu, e foi o inventor do dodecafonismo, no romance a técnica criada por Adriano Leverkuhn. Curiosamente, porém, dos três vultos atrás enunciados, Schoenberg é o único citado pelo escritor em nota de fim do livro. Por coincidência irónica, ninguém mais diferente de Adriano que o velho Arnaldo, sujeito bem-disposto, ao que dizem. Ouvindo a música sombria e híper-wagneriana que ele compôs, custa a crer, mas assim reza a crónica. E se um tipo tem de acreditar em alguma coisa, seja nas crónicas coevas...
Conta-se que, por ocasião da Grande Guerra, ao ser incorporado no exército, lhe perguntaram se era ele Arnaldo Schoenberg. E ele: «Saiba o meu sargento que ninguém o queria ser, alguém tinha de o ser, de maneira que sou eu.» Resposta que denota a um tempo sentido de humor e destemor: na tropa um sargento é um sujeito poderoso e pode transformar a vida de um recruta num inferno ainda pior do que o escatológico ou a mesma guerra. E também consciência do agro dos novos caminhos que a sua batuta abria à música, sobretudo quando comparados aos percorridos até então.
Seja como for, dificilmente representaríamos o bom Arnaldo estabelecendo um pacto em amena cavaqueira com o Diabo, vezo entranhadamente alemão, excepto que o nosso homem era vienense e judeu. Mas a música de Leverkuhn bebe no estridente dodecafonismo, e Schoenberg teria de concorrer forçosamente para esta história.
Adiante. Obviamente central é também a importância do mito de Fausto na cultura alemã, eminentemente romântica. Não esquecer que o tema de Fausto foi tratado logo no início do romantismo por Goethe, o pai do romantismo alemão (e também o maior expoente do classicismo, diga-se de passagem; é a grandeza goethiana: reunir e conciliar os contrários). Sabe-se que o romantismo alemão foi fundamental para o movimento que conduziu à unificação alemã, mas que também desembocou na Primeira Grande Guerra, cujos tratados finais pariram a Segunda. Para um espírito como Mann, burguês, liberal e conservador, nascido na velha Alemanha guilhermina, a Segunda Grande Guerra deve ter sido uma espécie de apocalipse, o fim da Alemanha e da sua cultura, pelo menos como fora praticada no século XIX e princípio do século XX: um cataclismo de proporções cósmicas.
Mas a ambiguidade reina neste romance: o diálogo de Adriano com o Diabo pode muito bem interpretar-se como o resultado de um delírio sifilítico, sem ao mesmo tempo deixar de ser revelador da profunda corrupção moral de Adriano e de uma Alemanha grávida do nazismo, uma nação que cortou radicalmente com os valores cristãos da sua identidade para tornar às eras de um paganismo primordial e mítico, profundamente alemão, resquício dos antigos povos germânicos anteriores à integração no universo romano, isto é: também na Igreja, instituição que prolongou no tempo tudo o que representou de civilizacional e comum o Império Romano.
Outro tema magistralmente tocado no Doutor Fausto é o aparente beco sem saída a que chegou a arte musical no fim do século XIX, sobretudo depois de Ricardo Wagner, que, juram os moderninhos, exauriu a linguagem da música romântica: daí terá vindo a necessidade do dodecafonismo e, depois deste, do serialismo da escola de Darmstadt. A modernidade, como permanente revolução que é, vai devorando os seus filhos, e o mesmo dodecafonismo ainda em vida de Schoenberg foi declarado caduco e obsoleto. Não se aguentou por aí além na vanguarda: afinal de contas, a coisa ainda se parecia muito com a música. Pois o grande problema do modernismo cifra em que a novidade tem de ser constante, e a mudança imparável. Parafraseando Chateaubriand: tudo na modernidade se apresenta mudado, excepto as modas, que mudam sempre. Mas ouçamos o nosso Leverkuhn: «É bem verdade que eu tinha uma cabeça boa, bastante ágil, e dons que misericordiosamente me haviam sido conferidos de cima. Poderia tê-los utilizado com honestidade e modéstia. Mas sentia com demasiada clareza: esta é a época em que já não é possível realizar uma obra de modo piedoso, correcto, com recursos decentes. A Arte deixou de ser exequível sem a ajuda do Diabo e sem fogos infernais sob a panela... Sim, sim, meus caros companheiros, certamente cabe aos nossos tempos a culpa de que a Arte estagna, que se tornou demasiado difícil e zomba de si mesma, que tudo se tornou demasiado difícil e a pobre criatura de Deus já não vê nenhuma saída, na sua miséria. Mas quem convidar o Diabo para a sua casa, para superar o impasse e irromper para fora, comprometerá a sua alma e tomará a carga da culpa dos tempos sobre a própria cabeça, de modo que acabará condenado. Ora, está escrito: “sede sóbrios e velai!” Mas nem todos conseguem fazê-lo. Ao contrário, ao invés de cuidarem sabiamente de tudo quanto for necessário na terra, a fim de que nela as coisas melhorem, e de contribuírem sisudamente para que entre os homens nasça uma ordem susceptível de propiciar à bela obra novamente um solo onde possa florescer e ao qual queira adaptar-se, os indivíduos frequentemente preferem faltar às aulas e entregam-se à embriaguez infernal. Assim sacrificam então as suas almas e terminam no podredouro» (p. 677 da Dom Quixote, 2010).
Repare-se: «… a Arte estagna, que se tornou demasiado difícil e zomba de si mesma…» Ora bem: se isto não define completamente na sua vacuidade a arte pós-moderna do mijadouro daquele artista francês, Marcel Duchamp de sua graça (ou falta dela), que postulou ser arte tudo quanto o artista declare arte, mijadouro incluído. Enfim, a loucura rematada, magistralmente exposta por Mann neste seu canto de cisne. Em última análise, o nosso autor considera a arte moderna, e principalmente a música moderna, como a obra do Diabo, ou pelo menos concebida com o seu adjutório; – e, ouvindo a Antena 2 da rádio depois da meia-noite, a gente fica tentada a concordar com ele.
Enfim, este livro, passível de várias, múltiplas e complexas interpretações, apesar de publicado em meados do século XX, e indiscutivelmente moderno até pela reflexão sobre a arte contemporânea, estará talvez mais próximo dos grandes romances oitocentistas do que do seu século, de Joyce, Virgínia Woolf ou até Proust. Quando Tomás Mann o publicou, já estava tão «fora de moda» (para o gosto da modernidade mais frenética) como as Quatro Últimas Canções de Ricardo Strauss ou como os concertos para piano e orquestra de Rachmaninov, obras também serôdias e publicadas por essa mesma altura. E sente-se que o seu intento é nada menos que fechar o círculo da cultura alemã, terminar o grandioso edifício do romantismo alemão iniciado por Goethe: ao Fausto deste responde o Doutor Fausto daquele.

Eis aí um romance na esteira dos grandes e maiores romances de sempre, e também um manifesto político e programático, filosófico e estético. Nele se representa que na arte alemã se atingiu um limite – o fim de um ciclo e de uma era – com a tragédia desencadeada pelo pecado da Alemanha no seu pacto com o Diabo, leia-se: nazismo.

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