03 julho 2013

O profeta irónico da nossa maneira de digerir o mundo






















Bem me lembro das primeiras crónicas de Miguel Esteves Cardoso que iam aparecendo no Expresso, no tempo em que o Expresso era o velho Expresso: um jornal interessante e cheio de vida, e não a chatice institucional em que se tornou. As crónicas do MEC traziam então algo fresco, novo, de humor fino e discreto. Encantava-me a sua visão estrangeirada das pequenas coisas quotidianas e corriqueiras, mas em que ele, por artes mágicas, com graça, veia e chiste, conseguia encontrar algo de excitante e novo. Descobrimos maravilhados que Portugal não era assim tão mau, era até óptimo, e havia boas razões para se ter esperança. A minha geração de universitários meãmente lidos não lhe podia ficar indiferente, e não ficou. Ainda hoje estas crónicas, publicadas outra vez recentemente, têm o sabor dos amores e desamores daquele tempo, que parece já tão longínquo. E ainda hoje o seu autor «continua a ser, na substância, o profeta irónico “da nossa maneira de digerir o mundo”» (Henrique Raposo). E o próprio se declara, no seu último volume de crónicas editadas ainda este ano: «Sou suspeito. Ser português é a minha profissão e, caso não exista isso de ser português, estou tramado» (Como É Linda a Puta da Vida, 2013, p. 173). E já se vê que não é por acaso que última edição da Arte de Ser Português, de Pascoais, corre por aí com um prefácio do nosso homem.    
In illo tempore, todos nós, quer dizer, a rapaziada da minha idade e um pouco mais velha, tivemos de aturar o discurso oficial esquerdista, pesado, antiquado, tipo Maio de 68 já algum tanto requentado e muito avesso à nossa maneira de sentir, isto muito por culpa dos professores de português e do neo-realismo cujo encanto parece que conseguiam vislumbrar, dóceis e beatos, sob a inspiração e férula do 25 do 4 e sua cartilha. Resultado: fiquei a execrar a poesia moderna. Só anos volvidos, quando descobri com espanto em Fernando António um confrade reaça, é que eu comecei a ligar à coisa. Mas nos anos oitenta um tipo não estava livre de encontrar um barbudo exaltado e necessariamente sinistro (nos dois sentidos) a declamar poesia do homem nos sítios mais insuspeitos: numas escadas, nas praças, nos cafés, na rádio, tv e disco! Uma espécie de praga. Era a época da luta de classes, da revolução e suas conquistas, da classe operária, das greves de transportes; em suma, Portugal ainda não mudou assim tanto há trinta anos a esta parte.
Estávamos fartos de que nos pregassem os grandes desígnios da Humanidade, «sempre em abstracto e com maiúscula, mas sem pessoas concretas lá dentro» (Raposo bis), a Poesia, também maiusculada, enfim a sacrossanta Culture, etc. A lista telefónica, tal qual a via o bom MEC, era assunto muito mais apaixonante. No Portugal bisonho dos anos oitenta, da crise económica, do FMI, da falta de perspectivas e do pensamento único esquerdista, esta espécie de calça de boca-de-sino mental (pois é, caro leitor: custa a crer que alguém usasse aquilo, mas fica sabendo que toda a gente as vestia!). Nesse ambiente, as crónicas do Esteves foram uma lufada de ar fresco, uma libertação, praticamente uma epifania; pelo menos, para um sujeito como eu, antes conservador do que amante dos amanhãs canoros, e que nunca morreu de amores do republicanismo jacobino, e vivia bem escondidinho no seu armário. (Sim, leitor amigo, naquele tempo um sujeito mais ou menos conservador também vivia num armário; já quem andasse pelo esquerdismo gozava de liberdade de expressão e opinião, e via-se aprovado em toda a parte. Para se fazer uma leve ideia: o próprio PPD defendia uma via social-democrata para o socialismo!)
E não é que, de repente, um tipo lê o MEC, e descobre que já não está sozinho, que há toda uma geração, ou parte dela, que se revê naquilo! Depois, sim, mas só depois, é que vieram os Viegas, Coutinhos, Raposos, enfim gente conversável. E legível. Ser conservador, ser reaça (como se intitulava o grande Nelson), ser admirador da dupla Thatcher e Reagan, passou a ser moda, ou quase. Foi uma descoberta.
E foi há quase trinta anos…

«Dictes-moy où, n’en quel pays,
Est Flora, la belle Romaine;
Archipiades, ne Thais,
Qui fut sa cousine germaine,
Echo, parlant quand bruyt on maine
Dessus rivière ou sus estan,
Qui beauté eut trop plus qu’humaine.
Mais où sont les neiges d’antan?»

       «Adeus, ó Esteves!» Fica-te embora, e, como diz o bom povo, que seja por muitos anos e bons. Que ninguém o merece mais do que tu.

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