03 novembro 2013

O meu Marcelo



«A leitura de Proust vai indo a bom ritmo, senão depressa, pelo menos à máxima velocidade que me permitem as minhas mais que poucas ocupações. Infelizmente, não me perco pelo estilo do homem: períodos longos, com muitas coordenadas e subordinadas engalfinhadas quase sempre a granel; nem parece francês. Não deve ser fácil lê-lo no original. Mas a sua visão interior das coisas agrada-me. Sem o saber, julgo que na minha escrita diarística o tenho imitado, não já na prosa, mas ao menos no tom», dizia-me na última das nossas ceias conversáveis um amigo que muito me custava incluir ainda entre o número dos profanos que não andaram Em busca do Tempo Perdido. Mas enfim lá reuniu forças, e mergulhou no universo que é a obra proustiana, e está a pique de integrar de pleno direito e proveito o número dos happy few que incensam o inefável snob.

Porque, meus amigos, a Humanidade podereis dividi-la ou classificá-la segundo os mais vários e desvairados critérios: em raças, nacionalidades, credos religiosos, classes sociais, grupos profissionais, partidos políticos, clubes da bola ou da bisca lambida, e o mais que vos aprouver; mas, antes de tudo, para uns quantos a separação das águas faz-se entre quem leu e quem não leu o nosso Marcelo.         

Mas não vos afugente aquela impressão primeiriça do meu amigo, que ainda tem muita lauda para virar. O estilo de «notre jeune homme»… uma pessoa vai-se habituando a ele, vencidas as primeiras cinquenta páginas a modo que destinadas a provar o empenho e interesse do leitor de escol, como as abluções obrigadas do fiel muçulmano à entrada da mesquita. E realmente, aqui a entrada é numa catedral.

Ainda assim, nunca se me varreu completamente a sensação – vaga, difusa, atmosférica, como diria o grande Nelson – de que tudo aquilo precisava da última demão, e talvez a tivesse se o meu Marcelo não se fosse por volta dos cinquenta… Lembremos que só os dois primeiros tomos foram publicados em vida; o resto ficou porventura sem a tal demão final com que se alcança e apura a irretocável sprezzatura do estilo clássico e ático.  Sejam pois esses períodos longos, mas jamais confusos, para compensar as frases minimalistas, curtinhas, dos moderninhos, tão diminutos, coitadinhos. Proust vem de escritores torrenciais: o duque Saint-Simon, o visconde de Chateaubriand, o burguês Balzac. Destes o mais aprimorado é o visconde, cujo pendor memorialístico tanto se repercute e ecoa na Recherche, neta das Memórias de Além-Túmulo.

Marcel Proust? Homem a um tempo subtil e substancial, intuitivo e de uma inteligência «orgânica», seja lá isso o que for. Nele não se oferece o acabado e conciso dos moralistas dos séculos XVII e XVIII, conquanto não lhe faltem fórmulas incisivas e até perfeitas; mas a visão do conjunto, a orquestração de um sem-número de elementos na obra total, como na música de Wagner. Nunca, tanto como aqui, o todo foi maior do que as partes. E depois diz-vos e descobre-vos coisas que mais ninguém vos disse nem descobriu ou sequer procurou: não é por acaso que a voz recherche se anuncia no título.

Mas sobretudo o que conta é a visão final do conjunto, que só se descortina e organiza na nossa mente no último volume, na última parte do último volume, na última página, e até na última linha e na última palavra: que remete para o título, para as subdivisões da obra, para a última parte dela e para a primeira linha e primeira palavra, que já a contém; e que, ao ecoar pela derradeira vez ao nosso ouvido mental de leitores extáticos, subjugados, encantados – tal ao aparecer pela primeira vez ao narrador, ainda menino e moço, a vista dos campanários de Martinville, a prenunciar-lhe o germinar do mundo que traz em si, e cujo parto e criação é o próprio livro, – como que nos desvenda os olhos para finalmente atentarmos de outro modo no que nos esteve a ser dito e apresentado ao longo dos sete volumes, e que só então se perspectiva e ordena organicamente (a tal qualidade) diante de nós como uma catedral que começasse por ser vista por dentro, depois de fora e muito perto, reparando-se em cada pormenor das colunas, portas, vidrais, rosáceas, etc., mas cuja forma e harmonia total e suprema, e imagem própria e distinta, só se apreendem à distância: por isso Proust bem advertiu que, ao invés do que ao primeiro lance poderia parecer, e alguns entenderam, a sua visão não era microscópica, mas sim telescópica.

 «Car le style n'est nullement un enjolivement comme croient certaines personnes, ce n'est même pas une question de technique, c'est - comme la couleur chez les peintres - une qualité de la vision, la révélation de l'univers particulier que chacun de nous voit, et que ne voient les autres. Le plaisir que nous donne un artiste, c'est de nous faire connaître un univers de plus» (jornal Le Temps, 12.11.1913).
 
E, ao findar a sua leitura, é que parece que estamos enfim preparados para a começar.


Nótula oficiosa: Quem se avistar com a edição dos Livros do Brasil chame-lhe sua.

2 comentários:

Anónimo disse...

Quem tem paciencia para ler aqueles volumes todos? O homenzinho nao era esquizofrenico? De qualquer maneiro louvo o Luiz por ao longo do tempo nos ir mostrando aqui literatura diferente da que costumamos ver à venda. Só por isso e pelas explicaçoes vale a pena le-lo.

Anónimo disse...

É só começar, e vencer as tais 1.ªs 50 págs.
Mas lembra-me um amigo que faz agora cem anos a publicação do 1.º volume: «Du côté de chez Swann».
Ainda bem: veio a calhar o nosso Marcelo.
Um minuto de silêncio, amigos.
LM