13 junho 2009

Sei Que Não Vou Por Aí


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços, E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

Cântico Negro de José Régio

3 comentários:

Fiat Lux disse...

É um grande poema do grande José Régio.
O meu preferido sem dúvida.

E como seria bom que houvesse hoje mais gente a dizer "não vou por aí!"

Pedro Lopes disse...

Rui,

sei que este foi o poema - e o declamador - escolhidos para a homenagem feita à tua tia, ontem, na Escola das laranjeiras.

Fizes-te bem a partilhá-lo connosco, pois como escreve o "Fiat Lux", é um grande poema de um grande poeta.

Também concordo com o "Fiat Lux", quando ele se manifesta contra algum seguidismo que por ai anda. Que pensemos todos pela nossa cabeça, e que tenhamos a coragem de dizer, de quando em vez, "não vou por aí".

pedro lopes disse...

...bem, não posso deixar de salientar a forma apaixonada e exaltante com que João Villaret declama este poema. Merece todas as palmas que se houvem no final. Brilhante, simplesmente, brilhante.

Se lido, é mais introspectivo, ouvido desta forma, torna-se muito mais intenso.