17 dezembro 2012

Bom tempo no canal



Já se sabe, é costume sempre observado, e porventura ainda mais correntio nesta admirável Idade Mídia: o Lusíada esclarecido – que hoje é como quem diz: informado e sobretudo informatizado – conhece primeiro a última novidade literária (mas não só nem principalmente literária) bifecamone ou franciú, e até colombiana, russa, arábica, indiana, nipónica ou chim, ou de qualquer lugar ou lugarejo da dita «aldeia global», do que os autores nacionais do cânone. Já por causa desta balda velha e relha, o austero Herculano, lá das suas oliveiras de Vale de Lobos, desabafava que entre os Portugueses o país mais desconhecido era Portugal.

É o fado. E será cada vez mais. Até à descaracterização e absorção total mediante a vampirização e substituição das línguas nacionais por esse novíssimo tipo de esperanto: o inglês de aeroporto e portátil, na via recta, mas não direita, e cada vez mais célere e celerada da expansão e imposição universal.

Eu também pecador me confesso… Seja pois disto exemplo, e péssimo, este vosso servo, que, nado e criado na «ocidental praia», não somente lusitana, mas até açoriana, só pouco há leu Mau Tempo no Canal, obra certamente canónica do romance português, que tão conseguidos conta muito poucos. Exemplo e demora tanto mais repreensível quanto nem o televisivo Se bem me Lembro… me lembrou de procurar as obras do seu autor! Valha porém mais como atenuante do que como desculpa a então pouca idade, senão mesmo a pouquidade, deste telespectador desatento.

Pois em Vitorino Nemésio, e peculiarmente neste livro, que só lamentamos seja o único romance entre as suas obras, depara-se-nos o exemplo, raríssimo na literatura portuguesa, do autor que não se inculca ou julga como superior ao mundo e personagens que cria ou apresenta, antes se nos mostra em uníssono ou consonância íntima com a sua criação.

Esta sintonia e paridade exclui-a quase sempre a ironia sobranceira e distanciamento constante em Eça; ora o sarcasmo, ora a idealização em Camilo; e, em menor medida, o excesso de pitoresco e sobrecarga vocabular em mestre Aquilino. Só porventura em Júlio Dinis se topará análogo afinamento do romancista com as suas personagens pelo mesmo, por assim dizer, diapasão vital. Esta compreensão de raiz da sua terra e gentes – mundo aqui presidido pelo cume do Pico, aureolado de nuvens em mutação constante a oferecer as mais variadas figuras e formas à contemplação das «ilhas que estão em frente» (e que, no dito feliz de Raul Brandão, são o que têm de mais belo), no triângulo geográfico mais romanesco do país: «O Pico estirava no negrume a sua enorme massa de lavas, que o dia costumava pintar docemente de lilás e de azul. Uma ou outra luzinha acusava agora na costa e nas vertentes da montanha as calhetas adormecidas, a porta de um botequim, a janela de algum pescador doente ou de um Sr. Laurianinho da Terra Alta ou de Santo Amaro, entretido a fazer as contas do vinho, da fruta e da lenha, à mesa patriarcal, com a ponta da coberta arredada. O Pico era aquilo: aquela Terra Santa aproada a sueste e carregada de vinhas, de baldios, de barcos-de-boca-aberta, de bofage e de iscalho de baleia, com gentinha ainda a pé, mães ainda firmes e belas para lá do oitavo filho, velhos com barba de metro, rapazes prontos para uma cana de leme ou para um báculo de bispo no Padroado do Oriente e felizes com qualquer destes destinos… – tudo isso debaixo de 3000 metros de “mistério” coroados de uma agulha de neve. E o Faial, em frente […]» – esta compreensão de raiz da sua terra e gentes implica a correlativa assunção e resgate da sua circunstância sem superioridades irónicas, reais ou imaginárias, nem sarcasmos desclassificadores; dispensa comprazimentos exagerados no folclore e cor local; e requer o concurso da natural empatia e ternura do criador com a sua obra e criaturas: apanágio este da grande arte, no sentir de Proust, que sabia do que falava, por o ter amplamente espelhado na sua obra, na sequência de outro grande da arte do romance, Tolstoi, talvez o maior de todos (God’s eldest brother, como lhe chamou Paul Johnson). Nem será por mero acaso que Nemésio nos informa de que Margarida Dulmo andava a ler Ressureição.

Atitude pessoal ou consciência ou posição estética, ou ambas, que se espelha na própria visão de algumas personagens, como o episódico Dr. Sérgio Alves, deputado pelo Pico em Lisboa, e que, ao contrário de Nina, «que tinha uma questão pessoal, um pouco afectada, com a pátria açoriana, detestando os ajuntamentos de Santos e recusando-se a ler o Portugal, Madeira e Açores», «Sérgio Alves vivia os tipos e coisas das ilhas com uma delícia imediata, sem se desarticular do meio reproduzido senão pela vaga experiência de uma vida mais larga. As suas saborosas evocações tinham um mínimo de crítica e perspectiva; por isso se mantinha típico, terroso, como parte integrante de todo ilhéu. Falando com o sotaque insulano, sabia tirar partido do pitoresco das palavras e exagerava a fala cantada e doce do Faial». Mas também os protagonistas: Margarida, que, «mil anos que vivesse, não esqueceria a noite do baile no meio daquelas jaquetas dos rapazes do Capelo e das saias rodadas das vizinhas da Rosa Bana. Sentia-se ali como a prancha que vem do alto mar e encontra enfim uma posição capaz de fixar as gaivotas e a sua própria massa de seivas, as suas fibras, os furos a que se agarram conchinhas e algas verdes»; e João Garcia, que «sentia diante dele a ternura que lhe dava a gente do “monte” a falar, e uma curiosidade invencível, que nascia de uma solidariedade táctica, como que referida a um convívio desmemoriado e remoto». E de que o capítulo intitulado «5.º Nocturno (Numa furna)», uma noite passada por Margarida entre baleeiros do Pico numa lapa de São Jorge após a trancadela de um cachalote, oferece um exemplo mágico. (Da atitude do Nina, «que tinha uma questão pessoal, um pouco afectada, com a pátria», oferecem-na quase todos os escritores portugueses. Não precisais de procurar muito: basta abrirdes o primeiro que vos vier à mão.)

Mas tudo sem quebra daquela serenidade imparcial de que decerto Nemésio se impregnou na leitura do grande russo, e que não deixa embaciar o espelho da narrativa nem descambar a ternura larga da compreensão dos seres e coisas em enternecimento húmido e embevecido perante a contemplação do próprio umbigo, à sombra do nosso campanário.

E não só nisso; também já no começo e fim do romance do nosso autor parece pairar a lembrança dessa leitura, e mormente de Guerra e Paz, que igualmente principia em diálogo e termina à noite, com as personagens recolhidas, demudadas do que eram pelos acontecimentos, e na previsão do renovar ou continuar do ciclo da vida, que todavia se antevê mais natural e propício na obra do russo do que na do português. E, se alguém nos faz lembrar Margarida Dulmo, é Natacha Rostov, personificação da espontaneidade vital e das mil esperanças e possibilidades risonhas da juventude, de que ordinariamente só muito poucas soem concretizar-se, e sempre à medida e custa das que ao mesmo tempo se vão descartando e excluindo, como todos acabamos por saber ou aprender a expensas nossas. Até desembocarem, para Margarida, num beco de difícil saída, pois «rompre avec les choses réelles, ce n’est rien; mais avec les souvenirs! Le coeur se brise à la séparation des songes» (Chateaubriand).

Beco onde ela, a julgar pelo seu génio («Esta menina é um pouco levantada. Boa criatura, bonita, representando bem… mas levantada!», no conceito do velho barão da Urzelina, que, por si só, bem merecia uma crónica…), apenas se conformará, como fez estoicamente aquela sua avó Margarida Terra noutro lance apertado («E ainda a propósito do Carlos e da Anna Silveira, só mais uma palavra, para te dizer que eu não me queixo de nada, bem sabes. A gente não é infeliz de todo em todo senão quando quer. Pois não é verdade que um pouco de paciência ajuda tanto?» (1)); e de onde o seu autor deixou à imaginação de cada leitor tirá-la.

 Mas receio que seja permitido concluir que a continuação só renovaria a mesma velha história de Ema Bovary ou da prima de um tal Basílio, e portanto já foi contada por Flaubert, Eça e tantos outros um ror de vezes, inclusive pelo próprio Tolstoi.
E em comparação dela a que acabamos de ler foi antes o bom tempo no canal…


(1) Nota evidentemente desnecessária: Nesse passo, minha avó Georgina, que, como já devem saber, tem lá a sua costela de filósofa, comentou por cima do meu ombro que, pelo menos nas ilhas, o estoicismo tem sido felizmente substituído pelo epicurismo; e do Continente informam-me de que por lá o epicurismo, por sua vez, já foi desbancado, ainda e sempre com maior felicidade de todos, pelo cirenaísmo ou hedonismo estreme. E acabo de ver a bem adubada Nigella, mestra da culinária pingue, a assegurar à cidade e ao mundo via TV que só se deve ter vergonha de se não ter prazer. Eu, por mim, em filosofias nem grandes assados não me meto; vou-me antes quedando mais ou menos frugal na literatura amena.

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