Depois de Camilo Castelo
Branco– Roteiro Dramático Dum Profissional das Letras, de Alexandre Cabral,
que se lê de uma assentada, sem conseguir parar, apetece ver «o profissional»
em acção. E vai daí, uma escolha pode ser Fanny Owen, de
Agustina Bessa Luís, livro sobre o excesso que foi ser Camilo, o mais romântico
dos nossos romancistas, o ultra-romântico de vida quase tão excessiva como a
obra. Nesta, D. Agustina captou bem o excesso do mistério deste homem picado do
génio e das bexigas. Digo o excesso, mas não propriamente o mistério: esse
continuará intangível até à cláusula dos tempos.
Sendo eu de natural antes quadrado,
ao parecer de minha avozinha (homo quadratus,
no sentido de Roma Quadrada), custa-me algum tanto a atinar com a necessidade
de desassossego em Camilo, homem por igual tenebroso e galhofeiro, que reúne em
si o pendor sentimental e a veia sarcástica dos poetas galécio-portugueses das
cantigas de amigo e de amor, e de escárnio e maldizer, ressabiado por muito
azar nas coisas da vida. Sina, pelos vistos, já de herança paterna: «Era
necessário ser desgraçado para não contradizer os fados da nossa família»,
palavras de sua tia Rita, de Vila Real. Alma penada entre dois mundos, meio
fidalgo, meio plebeu, entre o arcaico e o moderno, nem uma coisa nem outra,
bastardo de fidalgo e do destino... Está-me a fugir a pena para a frase
grandiloquente: deve ser influxo de D. Agustina.
Trata o livro do cruzamento de duas
personagens: José Augusto, morgado do Ladoeiro, e o nosso autor, dois
românticos já serôdios; estamos em 1850, mas, como sempre que mete Camilo, mais
parece 1820 ou 1810, ou até o século XVII, nunca o XVIII,si français. O primeiro, José
Augusto, semelha um Lorde Byron de fancaria à procura da alma, imita o lorde e
vai-lhe citando os versos: «Dandy, namorador
e homem funesto», diz dele D. Agustina. Isto de andar um homem à procura da
alma é triste, quando menos. Entram também, algo confusas, as manas Owens,
Maria e Francisca, Fanny, «rapariga sempre entristada e sonolenta», no dizer da
autora, modelo de heroína romântica, à imagem da Joaninha dos olhos verdes,
figurino introduzido pelo visconde de Almeida Garrett nas letras portuguesas,
talvez um pouco tarde, como é praxe portuguesa. (Rica figura, a deste visconde,
romântico nas letras, mais clássico na vida, ao invés de Camilo, que nunca
soube distinguir muito bem entre vida e arte.) E aparece por lá outrossim um
tal Manuel Negrão, fidalgo, antigo guerrilheiro miguelista do grupo do general
escocês Mac-Dowell, em que Camilo também terá andado. Criador de cavalos, nem
sempre honesto, Negrão é primo de José Augusto, e tinha por fito máximo da
vida«não estar na berlinda», discreto propósito, digno do Jardim de Epicuro,
que ensinava: «Esconde a tua vida». Mas a história vai-se desenrolando
lentamente; aqui ninguém tem muita pressa: lembre-se que o livro nasceu de um
guião para uma fita de Manoel Oliveira, e não será preciso pôr mais na carta…
Resumindo, o entrecho é um clássico…
romântico: o dito José Augusto namora mais ou menos Maria Owen; mas, com o
tempo, transfere o amor para a irmã Fanny, correspondente e amiga de Camilo,
eventualmente amada deste em segredo – não é claro. Estes love’s labour’sdão
brado: a mana mais velha queixa-se de Fanny lhe roubar o conversado à falsa fé.
Entretanto, e para ir acelerando a
acção, o nosso José Augusto resolve raptar a menina Fanny, mas perde-se a meio
da noite num pinhal: forte tolo, não preparou a coisa a preceito. Lá se
escafederam alfim, mas só para acabarem por descobrir que o amor tem espinhos:
o que já era de esperar de dois tolos românticos imaginosos de mais para se
pascerem nas amenidades do bom senso. José Augusto entra a ter ciúmes da
intimidade intelectual da moça com Camilo. A grande questão que aponta agora
naquela cabeça é se casa ou não com a moça. Depois de a «desonrar», verbo da
época, o dilema parece algo extemporâneo: devia ter pensado nisto antes do
rapto. Indeciso, resolve consultar um grupo de amigos para debater a questão.
«Grande baboso! Bom par deles
merecia!», ecoa a velha Ilda, colaboradora interna de minha avó Georgina. Meia
dúzia de anos mais nova que ela, mas ainda rija e fera, a boa Ilda começou a
trabalhar ainda no tempo de meu bisavô, aí pela década de 40, como criada de
servir; nos anos sessenta passou a empregada doméstica; nos anos oitenta, a
assistente; e agora, na primeira década do século novo, a colaboradora interna.
Não deve passar daí: embora ainda gerigota, os anos vão-se fazendo sentir,
coitada. Muito amigas, formam uma dupla terrível: se minha avó sai com um
ditério mais ou menos suave, Ilda robora acto contínuo em português forte.
Desta feita comentara minha avó que um homem deve guardar para si certas
decisões, e não consultar nem amigos nem família; logo Ilda, em eco: «Grande
baboso!», etc.
Mas vá lá: ainda assim, José Augusto
acabou por casar, mas o matrimoniamento, voz camiliana, acabou mal. A sombra do
romancista pairava sobre o casal, e José Augusto nunca se libertou do ciúme que
lhes empeçonhou todos os instantes da vida desde que se casaram, sem que o
sofrimento os unisse. Como é de esperar nestes casos, a moça não aguentou
tamanho calvário, e finou-se. José Augusto ficou meio doido – «Se o não era
já», observa minha avó, – tomava ópio, e, volvido um intervalo conveniente,
exagerou na dose, e lá seguiu a mulher.
Do trio, continuou Camilo a
interpretar episódios da vida romântica, amante freirático e leão da Invicta
oitocentista, até se lhe deparar Ana Plácido, femme fatale, passando
pelo que se sabe, e presumivelmente conheceu também a desilusão do Grande Amor:
«Se eu fosse só, como devia ser, se tivesse juízo, já tinha resolvido isto
sumariamente» (carta ao visconde de Ouguela). E «isto» acabou mesmo por
resolvê-lo, e sumarissimamente, mas anos depois, no 1.º de Julho de 1890: «Era
a sua derradeira esperança: voltar a enxergar as pessoas e as coisas. Depois de
cuidadosa observação, o médico aconselhou-lhe as águas do Gerês. Camilo
compreendeu a inexorabilidade da sentença na compaixão da mentira.» O médico
saiu, «acompanhado de D. Ana Plácido. Calmo e decidido, Camilo sacou do
revólver, em seu poder há vários anos, e disparou sobre o parietal direito» (A.
Cabral). «Meu Carlos, de vez em quando, morremos. São viagens que fazemos a
regiões ideais de onde não há mala-posta cá para a crusta desta bola que se
revolve sob as presas de um escaravelho incomensurável»(carta a Ouguela).
Não sem um lustro antes urdir o
rapto de uma última donzela, órfã de 17 anos e herdeira dos seus 200 contos,
levada ao rubro por cartas arrebatadas do punho do«profissional das letras» e
do «amor de perdição», para um dos seus filhos, dom-joão sertanejo e
estraga-albardas, que só se deu ao trabalho de as copiar, entre duas pielas:
«Vai pensando onde poderemos arranjar uma casa em que eles se alapardem.
Tenciono escrever ao António de Azevedo a ver se ele em Trás-os-Montes arranja
um padre que os receba. O que não podemos é desistir, porque lances destes não
se repetem na vida» (carta a Ana Plácido).
É o mundo do ultra-romantismo
português, intenso, obsessivo, irracional e desgrenhado, em que muito difícil
será encontrar um sentimento, uma ideia que possa compartir. Por uma vez, a
escrita algo hermética, a espaços indecifrável, de D. Agustina – lembram-se? «…
a boa da autora segue e pratica na escrita a maneira do pato na água: ambos
mergulham de vez em quando, e então deixamos de ver um e de entender a outra,
até que lá assomam uns metros ou frases à frente, e mais imaginamos a custo do
que sabemos ao certo por onde andou a ave, e o que disse a romancista» – a
escrita da Sibila aqui adequa-se maravilhosamente ao universo demente daqueles
três loucos. Em país com tanto sol, custa a crer aonde iam aquelas almas buscar
tantas brumas! Mas não, divino Leonardo, não é só a pintura que è cosa mentale;
também o Homem: aquilo de que se persuade forma-lhe, enforma-lhe e às vezes
deforma-lhe a vida e a visão da «mesma» ou Weltanschauung,
como sem falta diriam, respectivamente, uma doutora e um intelectual mais largo
do que comprido que eu cá sei.
…Episódios da vida romântica, mas de
Ana Plácido em diante sobretudo da vida literária: Camilo Castelo Branco, ainda
antes de atingida «a plenitude da sua fascinante carreira de escritor, foi
considerado o“Primeiro Romancista da Península”» (Cabral): «Eu posso escrever
romances jesuítas, romances franciscanos, romances carmelitas, romances
jansenista, romances despóticos, romances monárquico-representativos,
cabralistas, e até romances regeneradores: o que eu quiser, e para onde me der
na veneta», –mestre e baluarte do português vernáculo: «Se se perdessem todos os clássicos ficando só as obras de V. Ex. a
vernaculidade nada tinha perdido»(carta do velho Castilho, que sabia da poda, a
Camilo, ainda na casa nos quarenta), – o mais formidoloso dos
polemistas, a par do padre Macedo: «o escritor despia a casaca civilizada,
arregaçava as mangas da camisa, enfiava os tamancos plebeus e entrava, ardoroso
e feliz, pelo chavascal dentro, armado da sólida “marreta de ferro” para
castigar o insolente» (Cabral), – 133 títulos originais e mais de 60 000
páginas a uma média de 4 páginas por cada um dos 14 610 dias dos 40 anos da sua
actividade literária, «sem um único dia feriado»(contas do citado camilista).
«Como os nossos netos hão-de entreter-se comigo, ó Tomás Ribeiro!»
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