23 fevereiro 2013

O Mestre e Agustina




Depois de Camilo Castelo Branco– Roteiro Dramático Dum Profissional das Letras, de Alexandre Cabral, que se lê de uma assentada, sem conseguir parar, apetece ver «o profissional» em acção. E vai daí, uma escolha pode ser Fanny Owen, de Agustina Bessa Luís, livro sobre o excesso que foi ser Camilo, o mais romântico dos nossos romancistas, o ultra-romântico de vida quase tão excessiva como a obra. Nesta, D. Agustina captou bem o excesso do mistério deste homem picado do génio e das bexigas. Digo o excesso, mas não propriamente o mistério: esse continuará intangível até à cláusula dos tempos.
Sendo eu de natural antes quadrado, ao parecer de minha avozinha (homo quadratus, no sentido de Roma Quadrada), custa-me algum tanto a atinar com a necessidade de desassossego em Camilo, homem por igual tenebroso e galhofeiro, que reúne em si o pendor sentimental e a veia sarcástica dos poetas galécio-portugueses das cantigas de amigo e de amor, e de escárnio e maldizer, ressabiado por muito azar nas coisas da vida. Sina, pelos vistos, já de herança paterna: «Era necessário ser desgraçado para não contradizer os fados da nossa família», palavras de sua tia Rita, de Vila Real. Alma penada entre dois mundos, meio fidalgo, meio plebeu, entre o arcaico e o moderno, nem uma coisa nem outra, bastardo de fidalgo e do destino... Está-me a fugir a pena para a frase grandiloquente: deve ser influxo de D. Agustina.
Trata o livro do cruzamento de duas personagens: José Augusto, morgado do Ladoeiro, e o nosso autor, dois românticos já serôdios; estamos em 1850, mas, como sempre que mete Camilo, mais parece 1820 ou 1810, ou até o século XVII, nunca o XVIII,si français. O primeiro, José Augusto, semelha um Lorde Byron de fancaria à procura da alma, imita o lorde e vai-lhe citando os versos: «Dandy, namorador e homem funesto», diz dele D. Agustina. Isto de andar um homem à procura da alma é triste, quando menos. Entram também, algo confusas, as manas Owens, Maria e Francisca, Fanny, «rapariga sempre entristada e sonolenta», no dizer da autora, modelo de heroína romântica, à imagem da Joaninha dos olhos verdes, figurino introduzido pelo visconde de Almeida Garrett nas letras portuguesas, talvez um pouco tarde, como é praxe portuguesa. (Rica figura, a deste visconde, romântico nas letras, mais clássico na vida, ao invés de Camilo, que nunca soube distinguir muito bem entre vida e arte.) E aparece por lá outrossim um tal Manuel Negrão, fidalgo, antigo guerrilheiro miguelista do grupo do general escocês Mac-Dowell, em que Camilo também terá andado. Criador de cavalos, nem sempre honesto, Negrão é primo de José Augusto, e tinha por fito máximo da vida«não estar na berlinda», discreto propósito, digno do Jardim de Epicuro, que ensinava: «Esconde a tua vida». Mas a história vai-se desenrolando lentamente; aqui ninguém tem muita pressa: lembre-se que o livro nasceu de um guião para uma fita de Manoel Oliveira, e não será preciso pôr mais na carta…
Resumindo, o entrecho é um clássico… romântico: o dito José Augusto namora mais ou menos Maria Owen; mas, com o tempo, transfere o amor para a irmã Fanny, correspondente e amiga de Camilo, eventualmente amada deste em segredo – não é claro. Estes love’s labour’sdão brado: a mana mais velha queixa-se de Fanny lhe roubar o conversado à falsa fé.
Entretanto, e para ir acelerando a acção, o nosso José Augusto resolve raptar a menina Fanny, mas perde-se a meio da noite num pinhal: forte tolo, não preparou a coisa a preceito. Lá se escafederam alfim, mas só para acabarem por descobrir que o amor tem espinhos: o que já era de esperar de dois tolos românticos imaginosos de mais para se pascerem nas amenidades do bom senso. José Augusto entra a ter ciúmes da intimidade intelectual da moça com Camilo. A grande questão que aponta agora naquela cabeça é se casa ou não com a moça. Depois de a «desonrar», verbo da época, o dilema parece algo extemporâneo: devia ter pensado nisto antes do rapto. Indeciso, resolve consultar um grupo de amigos para debater a questão.
«Grande baboso! Bom par deles merecia!», ecoa a velha Ilda, colaboradora interna de minha avó Georgina. Meia dúzia de anos mais nova que ela, mas ainda rija e fera, a boa Ilda começou a trabalhar ainda no tempo de meu bisavô, aí pela década de 40, como criada de servir; nos anos sessenta passou a empregada doméstica; nos anos oitenta, a assistente; e agora, na primeira década do século novo, a colaboradora interna. Não deve passar daí: embora ainda gerigota, os anos vão-se fazendo sentir, coitada. Muito amigas, formam uma dupla terrível: se minha avó sai com um ditério mais ou menos suave, Ilda robora acto contínuo em português forte. Desta feita comentara minha avó que um homem deve guardar para si certas decisões, e não consultar nem amigos nem família; logo Ilda, em eco: «Grande baboso!», etc.
Mas vá lá: ainda assim, José Augusto acabou por casar, mas o matrimoniamento, voz camiliana, acabou mal. A sombra do romancista pairava sobre o casal, e José Augusto nunca se libertou do ciúme que lhes empeçonhou todos os instantes da vida desde que se casaram, sem que o sofrimento os unisse. Como é de esperar nestes casos, a moça não aguentou tamanho calvário, e finou-se. José Augusto ficou meio doido – «Se o não era já», observa minha avó, – tomava ópio, e, volvido um intervalo conveniente, exagerou na dose, e lá seguiu a mulher.
Do trio, continuou Camilo a interpretar episódios da vida romântica, amante freirático e leão da Invicta oitocentista, até se lhe deparar Ana Plácido, femme fatale, passando pelo que se sabe, e presumivelmente conheceu também a desilusão do Grande Amor: «Se eu fosse só, como devia ser, se tivesse juízo, já tinha resolvido isto sumariamente» (carta ao visconde de Ouguela). E «isto» acabou mesmo por resolvê-lo, e sumarissimamente, mas anos depois, no 1.º de Julho de 1890: «Era a sua derradeira esperança: voltar a enxergar as pessoas e as coisas. Depois de cuidadosa observação, o médico aconselhou-lhe as águas do Gerês. Camilo compreendeu a inexorabilidade da sentença na compaixão da mentira.» O médico saiu, «acompanhado de D. Ana Plácido. Calmo e decidido, Camilo sacou do revólver, em seu poder há vários anos, e disparou sobre o parietal direito» (A. Cabral). «Meu Carlos, de vez em quando, morremos. São viagens que fazemos a regiões ideais de onde não há mala-posta cá para a crusta desta bola que se revolve sob as presas de um escaravelho incomensurável»(carta a Ouguela).
Não sem um lustro antes urdir o rapto de uma última donzela, órfã de 17 anos e herdeira dos seus 200 contos, levada ao rubro por cartas arrebatadas do punho do«profissional das letras» e do «amor de perdição», para um dos seus filhos, dom-joão sertanejo e estraga-albardas, que só se deu ao trabalho de as copiar, entre duas pielas: «Vai pensando onde poderemos arranjar uma casa em que eles se alapardem. Tenciono escrever ao António de Azevedo a ver se ele em Trás-os-Montes arranja um padre que os receba. O que não podemos é desistir, porque lances destes não se repetem na vida» (carta a Ana Plácido).
É o mundo do ultra-romantismo português, intenso, obsessivo, irracional e desgrenhado, em que muito difícil será encontrar um sentimento, uma ideia que possa compartir. Por uma vez, a escrita algo hermética, a espaços indecifrável, de D. Agustina – lembram-se? «… a boa da autora segue e pratica na escrita a maneira do pato na água: ambos mergulham de vez em quando, e então deixamos de ver um e de entender a outra, até que lá assomam uns metros ou frases à frente, e mais imaginamos a custo do que sabemos ao certo por onde andou a ave, e o que disse a romancista» – a escrita da Sibila aqui adequa-se maravilhosamente ao universo demente daqueles três loucos. Em país com tanto sol, custa a crer aonde iam aquelas almas buscar tantas brumas! Mas não, divino Leonardo, não é só a pintura que è cosa mentale; também o Homem: aquilo de que se persuade forma-lhe, enforma-lhe e às vezes deforma-lhe a vida e a visão da «mesma» ou Weltanschauung, como sem falta diriam, respectivamente, uma doutora e um intelectual mais largo do que comprido que eu cá sei.
…Episódios da vida romântica, mas de Ana Plácido em diante sobretudo da vida literária: Camilo Castelo Branco, ainda antes de atingida «a plenitude da sua fascinante carreira de escritor, foi considerado o“Primeiro Romancista da Península”» (Cabral): «Eu posso escrever romances jesuítas, romances franciscanos, romances carmelitas, romances jansenista, romances despóticos, romances monárquico-representativos, cabralistas, e até romances regeneradores: o que eu quiser, e para onde me der na veneta», –mestre e baluarte do português vernáculo: «Se se perdessem todos os clássicos ficando só as obras de V. Ex. a vernaculidade nada tinha perdido»(carta do velho Castilho, que sabia da poda, a Camilo, ainda na casa nos quarenta), – o mais formidoloso dos polemistas, a par do padre Macedo: «o escritor despia a casaca civilizada, arregaçava as mangas da camisa, enfiava os tamancos plebeus e entrava, ardoroso e feliz, pelo chavascal dentro, armado da sólida “marreta de ferro” para castigar o insolente» (Cabral), – 133 títulos originais e mais de 60 000 páginas a uma média de 4 páginas por cada um dos 14 610 dias dos 40 anos da sua actividade literária, «sem um único dia feriado»(contas do citado camilista).
 «Como os nossos netos hão-de entreter-se comigo, ó Tomás Ribeiro!»



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