Armance, de Stendhal
Na manhã do dia 28 de
Outubro de 1824, próximo da Porta de Saint-Denis, no tempo em que Paris ainda as tinha,
um cocheiro que por ali passava deu com o corpo de um homem estendido no chão,
sem roupas e exânime. O homem parecia um cristo, de tanta pancada que apanhara.
Fora atacado por um grupo de desconhecidos, que, depois de lhe malharem forte e
feio, lhe levaram as roupas. Mas afinal não estava morto, gemia e, recobrando
os sentidos, indicou uma morada aonde foi conduzido.
Tratava-se de um moço de
trinta e poucos anos: cometeu a imprudência de apresentar queixa crime. O
assaltante e seus cúmplices entregaram-se voluntariamente à polícia. Logo se
descobriu a verdade: o jovem marcara encontro naquele lugar remoto com um
hussardo ou um dragão que só aceitara o prazo-dado com o virtuoso fito de lhe partir
uns ossos à laia de escarmento. O militar e seus camaradas vestiam o uniforme
de uma unidade de escol, e a justiça deixou-os em paz.
Comenta aqui minha
avozinha que, se fosse agora, outro galo lhes cantaria; e mais não disse… Mas
não receie o leitor benévolo que minha avozinha nutra alguma prevenção contra os
que se dedicam ao… sentimento grego. Assegura a boa Senhora que não a incomoda
o que recatadamente fazem dois cavalheiros das suas portas adentro, ou até num
discreto canto de jardim… A doce velhinha está perfeitamente à la page, como toda a gente.
Mas tornemos ao conto.
Chamava-se o nosso rapaz Astolphe, marquês de Custine. Ficou famoso por ter
escrito um livro de viagens: La Russie en 1839, em que pelos modos farejou que
aquilo já então parecia o que depois foi ainda mais. Não é porém o livro que
interessa agora; continuemos com o nosso Astolphe. Antes de preferir dragões,
ainda arranjou tempo e disposição para ficar noivo da filha do general Moreau,
da filha de Madame de Stäel e da filha da duquesa de Duras, duquesa que para
vingar a filha escreveu Olivier, romance
anónimo que conta a história de um «amante platónico por natureza» que serviu
de modelo ao romance que aqui nos traz: Armance
de Stendhal.
É a história de outro
jovem aristocrata, Octave de Malivert, visconde, belo, educado, espirituoso e…
razoavelmente incapaz de levar a coisa até ao fim. Gosto muito de Stendhal, um
dos meus escritores favoritos, mas confesso que este romance me deixou uma
impressão mista: a primeira parte custou a despachar; a coisa porém começa a
animar aí pelo meio do romance, com cenas e diálogos de grande brilhantismo, do
melhor Stendhal, do mais fino retoque de que a prosa francesa foi capaz. Exemplo: o bilhete do marquês de Créveroche ao nosso
herói Octávio: «J’ai, naturellement,
Monsieur, assez de mépris pour toutes les affectations, on en voit tant dans le
monde, que je ne m’en occupe que lorsqu’elles me gênent. Vous me gênez par le
tapage que vous faites avec la petite d’Aumale. Taisez-vous.
J’ai l’honneur d’être, etc…»
Isto tudo porque o
nosso Octávio se meteu no caminho do digno marquês nos seus esforços, aliás
infrutíferos, de enfeitar o marido de Madame d’Aumale. O homem até tinha alguma
razão de estar amofinado, já que Octávio era um tipo da categoria dos
empatas, ou seja, nem… avançava nem saía de cima. Mas isso são pormenores; o que
importa é o duelo que se seguiu àquele simpático bilhetinho: a meu ver, a parte
mais interessante do livro: a elegância da escrita chega à afectação, o que no
contexto vem ao pintar. Sai ferido o nosso Octávio; mas, depois de despachar o
marquês de Créveroche, ainda tem a presença de espírito de dizer: «Ce n’est qu’en fat de moins.» Mister se
faz reconhecer: o moço tinha-os no lugar; só que, por infelicidade, não
funcionavam onde sobretudo deviam…
Se esta teoria de Stendhal
colhe, ou seja, se o homem passou a vida a escrever sobre si próprio, e não só sobre
o que era na realidade, mas principalmente a idear como gostaria de ser,
suspeito que ele se entreteve principalmente com esta última actividade. Se a
tese procede, então o problema do nosso Octávio de Malibert não seria de todo
ignoto de Stendhal. Aliás, esta triste ocorrência explicaria muita coisa na sua
vida social e sentimental, a sua relação algo problemática com as mulheres. A
principiar pelo amor apaixonado que votava à mãe, e o ódio ao pai, o exemplo
mais acabado do clássico complexo de Édipo descrito na sua autobiografia Vie de Henry Brulard, obra-prima de que
um dia falaremos, em havendo oportunidade. Curioso: o nosso Octávio tem justamente
uma mãezinha, a quem também adora… Perpassa por todo o livro um saber de
experiências feito, muito significativo a esta luz.
Stendhal sempre teve
uma relação muito problemática com as mulheres, sempre foi incapaz de manter
amantes por muito tempo. Pondo isto em linguagem chã: foi sempre levando com os
pés… Ora uma boa explicação para isso pode vir das suas deficiências nesse
particular campo da alcova, tema a que por alguma coisa consagrou um capítulo
(«Fiascos»), a ressumar experiência, no seu De
l’Amour. Ou, usando a expressão de Simone de Beauvoir acerca do seu Sartre,
o homem était plutôt un caresseur qu’un
fouteur (e vamos e venhamos: haverá língua como o francês para falar de amor!),
o que acaba sempre por desconvir a toda a senhora, por muito compreensiva que
seja. Deve ter sido um drama para o nosso romancista e uma estopada para as eleitas,
primeiro todas transportadas pela conversa espirituosa de Monsieur Henri Beyle
e pela teoria e exemplos dos seus livros, e à certa confita confrontadas com o seu
desempenho au lit.
Epílogo
Octávio, ferido no
duelo, «compromete» Armance, suave menina das relações de sua mãe, apaixonada
desde a primeira linha pelo nosso visconde. Ora, como naquele tempo diria a
marquesa de Merteuil das Liaisons
dangereuses, lá muito do caro Stendhal (que julgo chegou a conhecer o
respectivo modelo): soit belle, si tu
peut; vertueuse, si tu veux; mais soit considérée: il le faut. Beliscado
pois l’honneur, segue-se o casamento coonestador
– funesto passo. Octávio, a seguir à sua boda, foge à doce e natural
consumação, embarca para bem longe, suicida-se três dias depois...
Deixou de empatar. Um pouco tarde…
1 comentário:
Sublieme! Soberbo!
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