17 fevereiro 2013

Uma lei questionável


A Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, promulgada pelo Presidente da República Jorge Sampaio em 31 de Outubro de 2005, estabelece a titularidade dos recursos hídricos do país, pertencentes quer ao domínio público quer a entidades públicas ou particulares.

Uma lei, sem dúvida, com interesse para todos os cidadãos e que tem especial acuidade, para nós açorianos, no que toca ao domínio público marítimo, já que vivemos sobre «porções de terra rodeadas de mar por todos os lados».

O domínio público marítimo, que, além das águas costeiras, compreende legalmente o leito das águas do mar, «limitado pela linha da máxima preia-mar», e as margens, abrangendo a largura de 50 metros «a partir da linha limite do leito (artigo 11.º), pertence ao Estado, como dispõe o artigo 4.º da mesma Lei.

Um princípio geral conhecido e, em si, consentâneo, mas que poderá, certamente, ser questionado pelo facto de equiparar, para o efeito em causa, as margens e os leitos do mar, assim como pela excessiva dimensão da largura das margens estabelecida por lei, que bem poderia ser relativizada.

Mais questionável ainda me parece ser o artigo 15.º desta Lei, o qual estabelece que «quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar», deve «provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868».

E, a agravar duramente tudo isto, estabelece ainda que este reconhecimento só poderá ser obtido «desde que (o proprietário) intente a correspondente acção judicial até 1 de Janeiro de 2014».

Esta é uma exigência que tem todo o sabor de prepotência, inconsideração e falta de realismo. É que uma larga percentagem das faixas de terra situadas dentro dos limites das margens legais é, nas nossas ilhas, propriedade, oficialmente reconhecida, de privados, que nelas exploram culturas agrícolas ou construíram casas de habitação, equipamentos vários, complexos turísticos, frequentemente integrados nas nossas fajãs, aldeias, vilas e cidades, mesmo que não fiquem situados além duma estrada regional ou local.

A Lei não pode esquecer que está a lidar com centenas ou milhares de cidadãos honestos que, através de operações de alienação ou sucessão absolutamente transparentes e legais, devidamente escrituradas, registadas e cobradas pelos competentes serviços do Estado, gozam de uma titularidade legítima e pacífica sobre tais bens fundiários.

Além disso, são pessoas que, na sua quase totalidade, não têm preparação académica ou profissional para realizar uma investigação de tão grande complexidade, quer pela sua especificidade e o largo período de tempo a que tem que recuar – à volta de 150 anos – quer ainda pela antiguidade, desgaste e difícil leitura dos documentos manuscritos antigos guardados nos nossos arquivos.

Como não têm também, na grande maioria, capacidade financeira para encomendar tal estudo a um investigador profissional, custear as despesas das acções judiciais e satisfazer os honorários dos serviços prestados pelos advogados.

Assim, para além dos muitos açorianos que não têm conhecimento da Lei – uma realidade difícil de ultrapassar – ou que não encetaram qualquer acção por acreditarem que uma tal exigência é inconsequente e inexequível, muitos outros ainda aguardam que esta Lei da República seja revista e adaptada, tendo em vista melhorar a viabilidade da medida, minorar a onerosidade financeira do processo e alargar o prazo para além do corrente ano.
                                                                                                      Arsénio Chaves Puim
                                                                                             ¨ (escritor e autarca in A Crença)

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro José Gonçalves
Se me permite, diria que face à transcrição deste artigo de Arsénio Chaves Puim, que regressou aos bons posts, justificadamente importantes para serem colocados no blog, parabéns por isso.
Leis sem razoabilidade social e histórica, são leis condenadas ao fracasso e constituem em si, mais um factor de perturbação social do que regulador social que as leis pretendem ser...
Há muito que o direito administrativo era foco de muitos atropelos e ponha a nu a necessidade de o conformar a uma sociedade mais democrática.
Mas apesar dos avanços jurídicos no respeito dos direitos dos particulares face a um certo abuso das entidades administrativas, ainda existem(e este governo tem criado mais problemas ao Povo neste campo)e a sua prática agora que existe crise, é mais evidente.
Embora reconheça a necessidade da autoridade administrativa se sobrepor aos interesses dos particulares deve fazê-lo com bom senso e respeitando as boas práticas administrativas e os justos interesses dos particulares.
Parabéns pela actualidade e interesse do texto.
Açor