11 março 2013

Um faraó em Paris


Mendigos e Altivos, de Albert Cossery

Tenho adiado a redacção definitiva das notas respeitantes a este livro, por pura perplexidade. Quer dizer, há já muito tempo que um livro me não deixava tão enleado, estupefacto até. Apesar de descobrir vários fios condutores, várias pistas, não consigo atinar com um quadro geral explicativo que me satisfaça completamente.
Livro que me foi oferecido e muito recomendado por minha avó Georgina da Encarnação Bettencourt de Medeiros, suave senhora de mais de oitenta anos, mas ainda e sempre desperta para as coisas boas dos livros e da vida. Foi o primeiro Cossery que li; tenho mais um em português: Os Mandriões no Vale Fértil, que comprei por tuta-e-meia em qualquer feira do livro, já lá vão alguns anos; depois encomendei as obras completas no texto: inevitável.
Mas tornemos ao livro propriamente dito: o que primeiro salta à vista é o estilo. Imperioso, ler o livro em francês; duvido que uma tradução lhe faça justiça à perfeição do estilo. Representa um hiperfrancês tão depurado e simples no seu equilíbrio, que talvez só um estrangeiro o pudesse escrever tão bem, quer dizer, tão desligado do que uma língua tem de material e instrumental. Reza a lenda que o nosso autor apenas escrevia uma linha ou duas por dia, o que lhe dava muito tempo para ponderar bem as palavras, como quem dispõe da duração dos antigos impérios egípcios, de que descende. E tempo não lhe terá faltado: nem quotidiano nem casado e, suponho, pouco tributável, viveu os seus últimos 60 e tal sempre no mesmo quarto de hotel, no coração de Paris, em pleno Saint-Germain-des-Prés, dispondo realmente de todo o tempo do mundo.
Há-de haver muito de verdade nisto, que por outro lado faz lembrar mais um estrangeiro a escrever em francês igualmente depurado: o romeno E. M. Cioran, que viveu e escreveu também em Paris, a escassas centenas de metros e na mesma altura do nosso egípcio, com quem se parece não só em língua, mas em filosofia e mundividência. Os livros de um podem olhar-se como casos práticos da teoria do outro. É pelo menos um paralelo que se recomenda ao novo Plutarco destes autores ilustres. Fique a pista.        
Minha avó Georgina, senhora mui perspicaz, sugeriu, e eu concordo (como quase sempre: quando discordo, venho a descobrir que errei escusada e portanto lamentavelmente) e eu concordo em que se trata de uma paródia ao romance Crime e Castigo, de Dostoievski, autor muito lá de casa, ou hotel, do faraó Cossery. O leitmotiv é o assassínio de uma rapariga; as semelhanças porém acabam aqui; o resto cifra-se na inversão completa da obra do grande russo. Com efeito, enquanto Rodion Romanovich Raskolnikov mata por dinheiro uma velha onzeneira sem préstimo visível, só com o fito de custear os seus estudos e ascensão social, Gohar, o nosso herói ou, mais à moderna, anti-herói – um velho sábio que inverteu na sua pessoa a ascensão almejada pelo outro, pois de professor universitário desceu por moto próprio e alta recreação pessoal a contabilista da maison de plaisir de Set Amina, a madame respectiva, – Gohar suprime Arnaba, a boazona do alcouce, por nenhuma razão especial, por uma álea muito… aleatória: estava aborrecido, sentia falta de droga, em linguagem carocha: «ressacava», enfim em calão psi: estava «descompensado». E a complacente Arnaba, que lhe pedira que lhe escrevesse uma carta para a família nas berças, até se propunha pagar-lhe de boa mente e em espécie o pequeno serviço…
Arnaba, que, vamos e venhamos aqui entre nós, merecia melhor sorte – e sobretudo melhor uso. Realmente, a mais dos dotes do corpo, não lhe faltavam as prendas do espírito: saiu-lhe um dos mais finos e acertados ditos do livro, dito corroborado pela história e experiência antigas e modernas, e livro em que aliás abundam: «Quand on a un beau derrière, on n’a pas besoin de savoir écrire.»
À semelhança de Crime e Castigo, também Mendigos e Altivos são um romance moral, só que a insinuada pelo seu autor é uma moral alheia à costumeira. Como no clássico russo, ao crime segue-se todo o caminho até à expiação e redenção; aqui porém não é o criminoso o «redimido», mas sim o polícia lilas ou, mais à moderna, gay, que resolve abandonar uma vida dedicada ao cumprimento do dever e, no fim do livro, mudar-se em mendigo.
Nos Mendigos o humor depurado é um estilo e uma arma; ironia, irrisão, escárnio, tudo é usado para solapar o mundo moderno e seus valores mais correntes, numa visão do outro lado do espelho.
Pois também Cossery fez a sua Umwertung aller Werte, a sua reavaliação de todos os valores, não foi só o bom Fritz (justamente outro dos autores do panteão pessoal do nosso homem), embora não exactamente no mesmo sentido, nem tão-pouco diametralmente oposto. Aqui o inimigo público número um é o trabalho rotineiro (the curse of the drinking classes of our country, como já muito antes advertira o delicioso Óscar, mas curse que minha avó assevera ter-se entretanto abatido especialmente sobre as classes abstémias), que exclui a nonchalance reflexiva, só ela geradora do summum bonum: a paz e harmonia, a contemplação e compreensão do mundo. Uma pulsão filosófica que vem dos finais do mundo antigo e helenístico, dos cínicos gregos em particular, mas que continuou a latejar noutros bons espíritos de eras não menos clássicas: «À ociosidade do sábio só falta um melhor nome, e que meditar, falar, ler e estar tranquilo se chamasse trabalhar»: insuperavelmente, La Bruyère. Nem deixa de ser significativo que um egípcio, um homem vindo de uma civilização antiquíssima, seja tocado por semelhante postura antiga. E não só egípcio, mas também copta, logo gnóstico: o livro regurgita de alusões endereçadas aos iniciados happy few.
Em Cossery, o humor depurado é um estilo e uma arma… Não terminemos pois sem realçar e apontar ao leitor curioso alguns achados. – A eleição do burro para presidente da câmara: era um asno muito pensativo e respeitado, a ponto de ser eleito, creio que por unanimidade. (Comenta minha avó que perante o panorama actual será caso menos extraordinário do que ao primeiro lance pode parecer ao olhar desprevenido.) – O edredão, em certo hotel, única peça de roupa de cama que servia todos os hóspedes na mesma noite, mas à vez, passando deste para aquele à medida que cada um ia aquecendo e adormecendo. – O mendigo que se recusa, muito escandalizado, a receber de uma só vez a esmola toda de um mês, não o tomem por funcionário público. – O homem-tronco: um varão desprovido de membros, mas não do membro, e que pelo visto o usa com tal e tamanha destreza e proficiência, que são as mulheres que se enciumam por ele, não ele pelas mulheres, numa vida radicalmente dedicada ao sexo. Este homem-tronco bem podia parafrasear o dito da boa (em mais de um sentido) Arnaba: quand on a un beau… Etc.
Sim, amigo Alberto, arvorar o trabalho, a eficiência e eficácia nos últimos fins da existência parece mais de formigas ou abelhas e outros insectos do que de homens conversáveis. A escravidão reveste mais formas do que Proteu.
E só a beleza importa.

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