19 março 2013

Um olhar inglês



Percorrendo pelo Natal as bancadas de alfarrabistas que ladeavam a Rua Anchieta, ao Chiado, deparou-se-me A Literatura Portuguesa (História e Crítica), de Aubrey FitzGerald Bell, editada pela Imprensa Nacional, Lisboa, 1971, mas obra do primeiro quartel do século XX. Quinhentas páginas, boa encadernação, preço conversável: chamei-lhe minha.       
Já em casa, reparando no nome de um dos tradutores – Agostinho de Campos, – lembrou-se minha avó Georgina da Antologia da Literatura Portuguesa organizada por ele: «Dezenas de volumes, menino, amoravelmente prefaciados e anotados pelo saudoso professor, que, além disso e de mais, publicou um livro sobre educação cujo título estou que resume em quatro palavrinhas o essencial do assunto: Casa de Pais, Escola de Filhos. Mas não os procures, que não encontras.»
Os portugueses sempre nos preocupámos de saber como nos vêem os outros, talvez até demasiado, sobretudo entre os escóis (alguns praguentos chamam-lhes por vezes escolhos…), que muitas vezes têm projectado uma imagem das coisas pátrias captada por olhos (ou óculos) estrangeiros, ou, pior ainda, pelo que julgam ser esse olhar, num jogo de espelhos que reflectem tanto imagens autênticas como factícias. E geralmente quem costuma ver-se a si próprio pelos olhos de outros corre o risco de ficar… malvisto. Porque mais entende o sandeu do seu do que o sábio do alheio, como o lembra Manuel da Costa na Arte de Furtar, e aliás constará da sabedoria das nações. E nem a própria síntese de Aubrey Bell deixa de avultar este pendor: «Os Portugueses, povo altivo e entusiástico, com certo amor da pompa e da aventura e uma receptividade ateniense, habitantes de extenso litoral e sem fronteiras definidas, foram naturalmente sujeitos a influências externas.»
Mas est modus in rebus, e a consulta da opinião estrangeira em doses moderadas não empanará a vista que se mantenha implantada no «seu», sem confundir perspectivas nem circunstâncias. E, justamente, pareceu-me que nesta história inglesa da literatura lusa o que em geral mais e melhor se apreciou foram os autores que revelaram maior autenticidade e sintonia com a sua circunstância portuguesa.
Com efeito, afora os nomes óbvios que resumem uma época, a simpatia e interesse do nosso inglês foi para autores como - Jorge Ferreira de Vasconcelos: «É difícil encontrar outro escritor português que nos dê ideia tão nítida da época – desta última pujança da grandeza de Portugal – ou daqueles bravos, amorosos e sonhadores portugueses que consideram o Amor tão exclusivo monopólio do seu país como o foram o marfim ou as especiarias da Índia»; - D. Francisco Manuel de Melo: «Menéndez y Pelayo colocou Melo acima de todos, com excepção do seu amigo Quevedo»; - Manuel Bernardes: «A sua reputação como mestre e senhor da língua tem resistido aos diversos critérios. As suas obras não são apenas deleite de estudiosos, mas glória reconhecida da nação, louvadas pelo iconoclasta Macedo e citadas como autoridade no parlamento republicano de 1915»; - o dito iconoclasta José Agostinho de Macedo, a quem chega a comparar ao Dr. Johnson, um dos do cânone ocidental, segundo Harold Bloom (cânone que este confundiu com o anglo-americano): «Pesado e iracundo, quase como o célebre escritor inglês Samuel Johnson, fustiga e esmaga o adversário em linguagem tão incisiva quanto vernácula. Poderá ser pouco escrupuloso nos argumentos, mas a sua prosa idiomática e vigorosa há-de agradar sempre aos leitores»; - e Trindade Coelho, «o melhor de todos os contistas portugueses».
E sobretudo – o que talvez seja algo inesperado no filho de um povo tão positivo e empírico – foi para o veio de prosa mística e fradesca, percursora de Manuel Bernardes, a qual lhe ocupa boa parte do livro, inspirando-lhe uma das melhores páginas: «O estilo, tão esquivo de alcançar por Flaubert e seus discípulos, vinha sem esforço algum aos escritores do século XVI. A força de carácter, o desprendimento, o entusiasmo absorvente, a singeleza de propósito, tais são as qualidades do misticismo na sua melhor expressão, e, se também se mostra por vezes vago e confuso, não acontecia isso com os grandes escritores religiosos e místicos do período áureo da literatura portuguesa. Para eles, o misticismo não era uma virtude nebulosa nem um humanitarismo abstracto e amortecedor de percepções, não era um nevoeiro, mas uma coluna de fogo em cuja luz melhor se evidenciavam  os factos e pormenores da realidade. Entretanto, se a intensidade do sentimento de muitos místicos tem o seu natural complemento no fervor e vigor directo da sua prosa, nem a todos assim sucedeu, e não foi somente em obras profanas que a língua portuguesa caiu nos laços do que em Espanha se chamou culteranismo. Tanto mais notáveis são a pureza, o gosto admirável, a simplicidade e o encanto de alguns dos prosadores mais recentes, do séc. XVII.
O segredo desta prosa está no próprio culteranismo, cujos conceitos e objectivos se baseavam no reconhecimento do valor das palavras: todos [os] seiscentistas se puseram a brincar com as palavras como se fossem pedras preciosas por engastar; e, entre outros, os escritores mais criteriosos ou mais inspirados interessavam-se também no jogo, mas sabiam escolher para si as pedras genuínas, deixando as outras àqueles que não conheciam a diferença das jóias para os vidros corados.»     
Mas a sua «paixão predominante» (como diria Leporello) vai para os mestres antigos: Gil Vicente, para ler os autos do qual consta que Erasmo aprendeu português, e Fernão Lopes. E de facto, se dificilmente alguém reputaria este ou aquele poeta, romancista, contista ou, ainda menos, dramaturgo português, já não digo por um dos maiores do mundo, porque alguns encontraríamos, mas por o maior do mundo, – todavia, foi possível a Robert Southey considerar fundadamente Fernão Lopes «o maior cronista de todos os tempos». E parece que, quando um país e um povo vive em sintonia com uma época e consigo mesmo, tudo lhe sai a preceito, história e arte. Assim Portugal na Idade Média: o médio evo assentava-lhe bem.
Mas também de pouco vos valerá procurar as obras da maioria destes nomes: dificilmente encontrareis. A Macedo, por exemplo, nada lhe aproveitou ter merecido a atenção de António Mega-Ferreira, que ainda recentemente lhe publicou a biografia. Nem assim algum editor se abalançou a editar-lhe sequer uma antologia, aproveitando o lançamento da biografia e a escolha sugerida pelo biógrafo. Nada mais raro do que um velho clássico ou escritor antigo português numa livraria portuguesa.
E precisamente uma das observações que mais impressionam nesta obra é o estribilho que Bell vai repetindo a propósito de uma e outra obra portuguesa, a saber: «Para tirar só um exemplo de entre muitos […] Sá de Miranda só em 1885 teve edição definitiva»; – «o Cancioneiro Geral [séc. XVI] tornou-se acessível por meados do século XIX, quando se publicaram os três volumes da edição de Estugarda»; – «o importantíssimo Leal Conselheiro, de El-Rei D. Duarte, foi redescoberto na Biblioteca Nacional de Paris, e dado à estampa somente em 1842»; – «a Crónica da Guiné, de Zurara, que chegou a andar perdida já no tempo de Damião de Góis, similarmente, em 1841»; – uma obra tão notável como o Livro da Montaria, de El-Rei D. João I, aparece em público somente no século XX, em edição do Sr. Esteves Pereira»; – «e o primeiro texto fidedigno de uma parte de Fernão Lopes foi publicado em 1915 pelo Sr. Braamcamp Freire» (p. 1 e 2); – «É por esta incúria e indiferença portuguesa pelas coisas de Portugal que se explica a sobrevivência das canções retornadas só em Roma, ao passo que as poesias mais solenes, mas menos nacionais, do Cancioneiro da Ajuda se encontravam no seu país de nascimento» (p. 40); – «Em muitos casos as versões foram cuidadosamente preservadas na Espanha conservadora, ao passo que as obras portuguesas, por incúria, incêndios ou terramotos, se perderam» (p. 81); – «Era característico dos portugueses acolher bem os livros estrangeiros, ao mesmo tempo que descuravam e desprezavam os seus próprios» (p. 152); – «Sabemos que esse livro [Autos de Gil Vicente] ficou manuscrito por um quarto de século; que a 2.ª edição, de 1586, foi tão maltratada pela censura que só contém 35 autos, ainda assim mutilados; e que durante dois séculos e meio nenhuma outra edição se imprimiu» (p. 167); – «E as suas Lendas da Índia [de Gaspar Correia, séc. XVI] não foram publicadas senão no século XIX» (p. 261); – «Escrita em 1685, a sua obra [de João Ribeiro, século XVI, sobre a ilha de Ceilão] foi traduzida em francês (1701), 135 anos antes de ser impressa em português» (p. 269); – «O manuscrito [dos Roteiros de D. João de Castro] foi comprado por Sir Walter Raleigh e publicado em inglês em 1652, duzentos e oito anos antes de aparecer edição portuguesa» (p. 302); – «O poema satírico Os Ratos da Inquisição, de António Serrão de Castro (1610-1685), foi publicado pela primeira vez por Camilo Castelo Branco em 1883» (p. 341). Etc.
E o bom inglês toca a empregar no original o vernáculo lusíada que tem definido classicamente esta constante e costume pátrio: «desleixo», diz ele. 
Ainda assim, nós procuramos, podemos não encontrar, mas tão-pouco nos admiramos.   

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