01 abril 2013

O Minotauro no Labirinto dos Círculos



Circundando O Delfim, de José Cardoso Pires


A coisa começa mal, ou melhor, não é tanto o livro, mas o prefácio, da autoria do saudoso EPC, intelectual mais largo que comprido, com o sugestivo título de «O círculo dos círculos»: doze páginas de prosa etérea, de que li as primeiras duas, e passei pressurosamente adiante. Fiquei cinco minutos a matutar no significado do exercício, não lhe palpei nenhum; mas, por volta do minuto seis, comecei a vislumbrar um tal ou qual sentido, uma série de tretas ao estilo do nosso saudoso Eduardo e daquele argumento muito cerrado – e também circular – com que se debatia Alonso Quijano, el bueno: as razões da sem-razão que à minha razão se fazem, obscurecem de tal maneira a minha razão, que com razão me acho para, etc., por aí fora, mas sempre deste teor.

Uma pequena amostra? Seja: «Numa linguagem mais técnica, poderíamos dizer que aquilo que costumamos considerar como as funções narrativas (momentos privilegiados em que qualquer coisa se decide, e em que a decisão tomada faz que nada volte a ser como dantes) está praticamente ausente da criação romanesca de Cardoso Pires, e o que fica são indícios, proliferação de elementos e factores que se articulam com «sinais de um mundo» que é preciso decifrar. O universo do autor, no seu jeito assumido de tapeçaria medieval, é um universo que definitivamente é e interminavelmente está a deixar de ser. Praticamente, todo o fazer nos surge secundarizado. Ou é um fazer que se adia, deslizando para o lado do jogo, como nos anjos eternamente ancorados do livro que a uma tal imagem vai buscar o seu título. Ou é um fazer que se converte ele mesmo em indício, isto é, em modalidade do ser (do ser que é na iminência de deixar de ser, do ser que é um deve ser).»

Hem?

Era o que eu dizia. Intelectual puro-sangue.

O tema precípuo do livro é o coitado, não por acaso representado pelo dito delfim do título, engenheiro de profissão e, a meu ver, mui justamente «adornado». O homem não dava a prometida e devida assistência conjugal em casa, passava os tempos livres nos bares da moda, bêbado e enrabichado com dançarinas frandunas e exóticas. Isto segundo o nosso autor. Vistas bem as coisa, temos portanto romance moral.

O narrador é o intelectual amigo da casa, ou seja, presumivelmente o autor lui-même, vagamente enfadado por não ter sido o eleito para minotaurizar o amigo na vez do criado mulato e maneta; e, não fosse este um romance moral, talvez a escolha recaísse no amigo. Realmente, que diabo! qual a dama que vai recrutar um criado mulato e maneta para amante, podendo beneficiar de um varão escorreito, ainda que intelectual? (Esperem: intelectual? «Um tipo que julga que há no mundo algo mais importante que o sexo», na definição de Aldous Huxley. E, sim, leitor cordato, afinal, talvez a escolha nem seja assim tão absurda…) Mas, para o escarmento ser exemplar, tinha de ser assim. Não que o nosso narrador houvesse pensado em enganar o delfim: sempre há a amizade, o pudor; afinal estamos no Portugal dos Anos Sessenta, mandava quem podia. Nota-se porém uma certa mágoa expressa pelo narrador depois de conhecido o fim da aventura.

A acção desenrola-se no presente, já depois dos acontecimentos trágicos, mas com grandes mergulhos pelo passado em que se vai contando o enredo propriamente dito. Esta técnico-táctica é vagamente irritante porque requer atenção aturada por parte do leitor, facilmente distraído pelos apartes intelectuais do narrador. Se a gente se não precata, já não sabe em que tempo está, o que torna o entrecho sobremaneira confuso. Afora este modernismo, que deve ter encantado os moços e as moças dos Anos Sessenta, rapazio que fez a fama deste romance, aliás muito exagerada, se querem a minha opinião. Percebo que a malta de então estivesse farta do romance e da disciplina tradicionais, de Salazar e dos respectivos papás e mamãs. Além do que, dizia eu, este romance trazia novidade formal cabonde, o assunto era razoavelmente escabroso para a época; e, por outro lado, as descrições da mulher do engenheiro, Maria das Mercês de sua graça, prometedora graça, são sugestivas em grau sumo, sumosas até. (E vamos e venhamos, leitor experiente e de vistas largas: com dona de tantas e tamanhas prendas e partes, Palma Bravo, se fosse um pouco menos engenheiro e um pouco mais filósofo, bem podia dizer, como já o discreto Tomé Pinheiro da Veiga, posto que no carrancudo século XVII, perante outra dona muito menos apessoada e favorecida, mutatis mutandis: «Antes aceitara ser cornudo, uma hora por outra, que viver toda a vida com a senhora fulana, de que Deus me livre» – Fastigimia, 1987, p. 147.)    

Como não podia deixar de ser, nos Anos Sessenta toda a gente era do contra; e o romance de José Cardoso Pires ensaia um ataque ao sistema patriarcal em que o país vivia. Nota-se ainda, aqui e ali, a invejazita do intelectual narrador ao macho dominante que o delfim representa. Parece que o tema do homem senhor de si era uma preocupação da década: haja vista, além da Cartilha do Marialva, ensaio do mesmo autor, outro romance emblemático daqueles anos: Angústia para o Jantar, de Luís de Sttau Monteiro. Quem muito se exalta, será rebaixado; por isso mesmo o nosso delfim é tratado da pior maneira possível: cornudo e bêbado, e cornudo da pior maneira, enganado pelo criado mulato e maneta. Ainda se este fosse um sujeito pequeno-burguês, sadio e escorreito, o caso orçaria pelo trivial; mas, tratando-se do criado, maneta e mulato, um tipo que em si congregava nada mais que desvantagens, parece-me que Pires traz de olho algo que transcende a normal e consuetudinária cornificação. É uma punição cósmica. Assoma aqui uma metáfora evidente: o nosso engenheiro Palma Bravo (nome que está desafiando a Némesis…) representa a velha ordem tradicional (e o regime que a mantém), ou ainda os que se propõem continuá-la; e o romance desemboca no agouro metafórico da destruição desse statu quo.

Enfim, parece que o criado tombou galhardamente no campo da honra, como quem diz: no tálamo do engenheiro com a consorte deste, fulminado por uma síncope cardíaca durante o acto propriamente dito por excelência; e a dita consorte (ou antes sem ela), recambiada à sua derrelicção existencial e angústia de ser-aí – Dasein (espero que esta não escapasse ao refinado EPC), lá se foi finar na Lagoa, qual Ofélia. Suicídio ou mão vingadora do delfim metamorfoseado em minotauro? Não se sabe. O autor não prima excessivamente pela clareza neste lance.

Certo, nada disto faz muito sentido, excepto num romance metafórico e moral, como estou que foi essa a intenção do seu autor. Os jovens da época hão-de ter adorado fazer a «leitura» do romance, descascar-lhe as camadas de significações ocultas, e discutir o assunto com os amigos, pelos cafés. (Por exemplo na Mexicana… Nos meus tempos do Técnico avistei por lá o saudoso EPC umas quantas vezes.)

Outra questão que se me afigura curiosa: a semelhança formal entre este romance e A Balada da Praia dos Cães, vinda a lume no início da década de oitenta, 16 ou 17 anos depois deste Delfim. Também na Balada aparece um sujeito superior que acaba mal, a técnica narrativa é a mesma, a descrição da boazona do romance, idem. Contudo, se bem me lembro (eu li a balada há mais de vinte anos), a intenção metafórica transparece menos explícita; ou melhor, se está explícita, eu na altura pelo menos não dei tento. Isto para dizer que o nosso autor não era dotado de excessiva imaginação. Consta até que era muito «esforçadinho».

Cardoso Pires ainda ia sendo um dos raros para quem a língua existe, atento aos seus modismos, subtilezas, mistérios e maravilhas, como diria Vasco Botelho de Amaral: por ex., tencionava empregar em título o idiomatismo coisíssima nenhuma, seduzido pelo singular da sua formação (um substantivo superlativizado) e expressividade – coisíssima nenhuma que, reconheçamos aqui entre nós francamente e de uma vez por todas, vem na melhor tradição do modernismo, se é que se pode falar de tradição a propósito de modernismos, o que se me afigura altamente duvidoso. Mas a parca cortou-lhe o fio antes do tempo. E, conquanto esteja longe de entrar no meu panteão de escritores dilectos, devemos inscrever no seu activo o dom de plasmar a feição psicológico e moral do Portugal de Sessenta: o Portugal algo reles e pelintra da unha comprida e modos embezerrados que via com ressentimento os ricos a gozar a vida. Avulta a descrição das popozudas e outras lascas, sempre uma por romance, a longa prática do mironismo impotente, típico do caixeiro do comércio e do escriturário das repartições, todo um mundo bem flagrado por este autor, uma ambiência cinzenta e triste, pelo menos para quem vivesse na grande cidade e carecesse dinheiro ou relações.

         Havia decerto outro mundo: o das pessoas normais e assentes, como por exemplo os meus maiores, que se casaram na década de sessenta, época de prosperidade crescente, e que conheceram os seus dias bons e maus, tendo e criando filhos, arredondando a fazenda, conversando amizades e conservando relações, e recreando-se o seu tanto: enfim, vivendo a vida habitualmente. Mas este mundo interessa mediocremente a escritores. Não escreveu o maior deles todos que «As famílias felizes parecem-se todas; as infelizes são-no cada uma à sua maneira»?

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