Se bem que as penas
destas avezinhas sejam no geral (e no particular) o mais possível diferentes
das minhas, contudo, de vez em quando depara-se-nos uma observação que encontra
em nós o seu eco e anuência.
Tais coincidências,
sempre raras, apesar da natural e cultivada indiferença da opinião do próximo
que a cartilha do discreto manda exercitar, não deixam todavia de ser gratas e
até tranquilizadoras, por isso que, nas palavras do cínico antigo, não convém
uma pessoa permanecer muito tempo onde ninguém se parece com ela; e «un alma
necesita respirar almas afines, y quien ama sobre todo la verdad necesita
respirar aire de almas veraces» (Ortega y Gasset, El Espectador, I, «Verdad y perspectiva»).
Pois a última
destas raridades deflagrou-a uma observação de Francisco José Viegas, por
alguma coisa um liberal à moda antiga, amigo ou porta-voz de António Sousa
Homem, por sua vez um antigo e um liberal; observação, ainda assim,
prudentemente envolvida pelo bom Viegas entre parêntesis no meio do artigo do Correio da Manhã, de 3 de Maio, a
saber: «(o betão de Fátima é a prova da imensa capacidade da igreja de hoje
para ignorar a beleza)».
E tenho pensado nisso, tanto mais
que, ultimamente, como preparação de próxima viagem a Itália, ando lendo sobre
a arte italiana.
Desde os tempos do Renascimento,
quando a Igreja patrocinava os grandes artistas, até aos tempos desta
modernidade ou pós-modernidade, quando a Igreja encomenda à artista Joana
Vasconcelos um terço gigântico à laia de obra de arte comemorativa do
centenário das aparições (ou visões? Eis a magna questão do momento), a
Igreja mudou, e não me parece que para melhor. Parece-me que faltam pecadores
na Igreja, quer dizer, na hierarquia. Fazem falta príncipes da Igreja
verdadeiramente dignos desse nome; os cardeais e papas de agora serão muito
santos, mas bacoreja-me que sem a chama da volúpia do belo, «sempre rubra, ao
alto, a arder», num Júlio II ou num Leão X. Os de agora afiguram-se-nos muito
boas pessoas, santos decerto, mas apagados para a beleza. E toda a gente perde
com isso, até a Igreja: «Não olheis aos vossos pecados, mas à fé da vossa
Igreja», já dizia o seu mentor. E como pode haver fé sem a grande arte, deuses
imortais! Música, pintura, arquitectura… Se não fosse a Igreja, onde estavam
três quartos da Arte Ocidental?! Encomendam a Siza barracões industriais à laia
de Igrejas, para não tornar à nutrida artista Joana Vasconcelos, que confunde o
tamanho XXXL da sua roupa com o volume das suas putativas esculturas.
Reserve-se urgentemente uma cota no colégio de cardeais a pecadores de boas
famílias por amor da arte. – S. O. S., seja, mas também S. O. A.
O que é triste é que os
experimentalistas, em vez dos artistas, tomaram conta dos departamentos
culturais da única entidade que continua a gastar dinheiro com música e escultura,
o Estado. Fazem falta os grandes mecenas privados. A Igreja, entregue a santos,
desamparou a grande arte. Por desventura, os santos, ou são por via de regra,
senão exigência de ofício, ignorantes, ou estão mais preocupados com a
beatitude; e os outros, os aristocratas magnificentes, são uma espécie extinta.
Os ricos actuais mostram-se ordinariamente incultos e até crassos, mingua-lhes
a criação e o refinamento apurados por dez gerações ininterruptas de gente
opulenta, entendida e requintada. É pena – porque para a arte é melhor ser belo
do que santo, ainda que seja melhor ser santo do que feio.
Hoje, porém, o pior de tudo ainda é
a subserviência perante o «Artista» (com maiúscula). Hoje, qualquer enzona se
encampa por obra de arte porque a mera experiência substituiu a obra.
Mas não faltam os Mozarts potenciais.
O que falta é um arcebispo de Salzburgo que trate o artista como um criado;
genial embora, mas criado.
Porque uma vez e sempre se confirma
que a «arte nasce de constrangimento, vive de luta, morre de liberdade»:
excelentemente André Gide.
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