04 janeiro 2007

A Aliança da Europa com os EUA

O "Projecto da Paz Perpétua" de Kant e a situação actual.
A utopia pacifista parte do pressuposto de que a escolha dos inimigos é uma opção inteiramente unilateral. Sendo assim, os pacifistas europeus consideram que, para não terem que enfrentar ameaças externas, basta decidirem que não têm ‘inimigos’. Ora, hoje são muitos aqueles que dizem que a ‘Europa não tem inimigos’. Este pressuposto enfrenta três problemas que convém discutir. Em primeiro lugar, não é possível decidir de um modo unilateral que não existem ameaças externas. É simplesmente um luxo que na política internacional não se pode ter. Se algum Estado ou movimento político considerar os europeus como inimigos, a Europa tem um inimigo, mesmo que isso seja contra a sua vontade. O pressuposto de que a escolha dos inimigos é determinada de um modo inteiramente autónomo é o resultado de um absurdo racionalismo que recusa aceitar que na política internacional há resultados indesejáveis que não se controlam e com os quais é necessário lidar. Por exemplo, está demonstrado que muitos grupos terroristas islâmicos consideram os países europeus inimigos, e que existem inúmeros planos para se fazerem ataques terroristas contra alvos europeus. Ou seja, bem podem os europeus dizer que não têm nada ‘contra o Islão’, e é verdade que muitos não têm, mas isto não é suficiente para proteger a Europa. É igualmente verdade que há muitos movimentos políticos ‘islâmicos’ que odeiam a Europa e estão dispostos a usar a força contra os europeus.
Em segundo lugar, os europeus acreditam que podem afastar rapidamente as heranças do seu passado político. A verdade, porém, é que a história política europeia deixou um pesado legado, e parte desse peso dá origem ao aparecimento de inimigos da Europa. A actual geração de políticos europeus não fez a história da Europa mas tem que aceitar as consequências dessa história. Em termos muito simples, não basta ter agora boas intenções em relação a todos aqueles que têm razões históricas para sentirem ressentimentos contra os europeus para deixarmos de ter inimigos. Neste momento, as maiores manifestações de insatisfação contra o Ocidente acontecem nos países que têm fronteiras com os países europeus ou que foram colónias europeias, particularmente no mundo islâmico. Não é preciso fazer um grande esforço para entendermos que o profundo ressentimento destas sociedades é muito anterior ao início da hegemonia americana. As suas origens encontram-se na expansão da Europa e no domínio europeu. Veja-se, por exemplo, o caso da Palestina. Se é indiscutível que existe um grande ódio contra os Estados Unidos, devido à sua política externa, é igualmente certo que ninguém esquece as culpas dos britânicos. De igual modo, o ressentimento dos argelinos é essencialmente dirigido contra os franceses.
Há ainda um último ponto relevante. Uma das razões que explica o interesse dos países europeus em iniciarem o processo de integração foi a necessidade de combaterem o seu declínio político. Durante largos séculos, os países da Europa Ocidental dominaram o resto do mundo. Devido a este domínio, o poder das colónias não afectava os cálculos políticos das potências europeias. Ou seja, a ‘Índia’, o ‘Paquistão’, ‘Israel’, os ‘países árabes’, a ‘pobreza africana’, o ‘terrorismo islâmico’, e mesmo a ‘China’ não existiam como problemas políticos. Hoje, dominam a política mundial. Após a segunda guerra mundial, a distribuição do poder mundial alterou-se radicalmente. As antigas potências mundiais perderam os seus impérios e transformaram-se em potências regionais, e as antigas colónias passaram a ser novas potências regionais e mundiais. Num mundo “pós-europeu”, os países europeus isoladamente não têm qualquer expressão política e, por isso, uniram-se. No entanto, o ponto crucial, mais uma vez, foi a existência da Aliança Atlântica. A aliança com uma das duas superpotências, primeiro, e com a potência hegemónica, após o fim da Guerra Fria, mitigou os efeitos da nova distribuição de poder mundial, e reforçou o poder e a influência dos países europeus. Mais importante, tem garantido a segurança das “repúblicas Kantianas” contra as ameaças vindas do mundo “Hobbesiano”. Em conclusão, o aparecimento de ameaças independentemente da vontade dos europeus, a herança da história europeia e a nova distribuição do poder mundial continuam a fazer da segurança uma questão vital para o futuro da “Europa Kantiana”. A implicação é clara: sem a Aliança Atlântica, é necessário criar mecanismos de segurança alternativos.
Se continuam a existir ameaças à segurança das “repúblicas” europeias, ou seja se estas continuam a ser afectadas pelo estado de guerra internacional, sem a aliança com os Estados Unidos, existiriam certamente pressões políticas e estruturais que obrigariam a “Europa” a adoptar estratégias de segurança alternativas. Alguns sinais que apareceram durante a recente crise transatlântica permitem sugerir a natureza de duas alternativas possíveis. Uma seria o “federalismo Hobbesiano”, o qual permitiria lidar com o mundo “Hobbesiano”. Veja-se o que aconteceu recentemente na Europa. Numa atitude sem precedentes, a Alemanha e a França procuraram “falar pela União Europeia” em relação à crise do Iraque. Ou seja, mostraram o mais profundo desrespeito pelo Conselho Europeu, e comportaram-se como se representassem a União e esta não fosse mais do que um mero instrumento dos seus interesses. Pior do que tudo, implicitamente, sugeriram que a construção europeia se poderia fazer contra os Estados Unidos e a Aliança Atlântica. Ao fazê-lo, os governos francês e alemão pretendem reforçar o seu domínio no interior da União em nome da “segurança europeia”. Ou seja, sem a Aliança Atlântica haverá uma via para se construir uma federação hierarquizada e fortemente centralizada, dominada por um núcleo duro franco-germânico.

A outra alternativa seria a “renacionalização” das políticas de segurança. De resto, como demonstram as divisões criadas pela crise iraquiana na Europa, esta alternativa poderia aparecer mesmo como uma reacção à tentativa de se criar uma “federação Hobbesiana”. Neste cenário, os países europeus passariam a garantir a sua segurança através de coligações variáveis e de alianças bilaterais com os Estados Unidos. Imaginem como é que muitos dos países europeus iriam reagir à transformação da Alemanha numa potência nuclear, o resultado mais provável do fim da Aliança Atlântica. Parece evidente que países com a Polónia, a República Checa e a Hungria iriam procurar aliança bilaterais com Washington. Seria a divisão da União Europeia, e possivelmente o seu próprio colapso, e o “regresso ao passado nacionalista” na Europa.

Pode-se assim concluir que ambas as alternativas significariam o fim da “Europa Kantiana”. A primeira, uma “federação Hobbesiana”, garante a segurança externa e a paz interna mas instala a tirania da hegemonia centralizada dos grandes, nomeadamente da Alemanha e da França. A segunda, a renacionalização das políticas de segurança, mantém a liberdade e o pluralismo na Europa, mas aumenta a insegurança e poderá mesmo levar a novos conflitos nacionalistas e ao regresso da anarquia. Voltando à contradição identificada no início do ensaio, é legítimo ver na União Europeia um instrumento de contra-poder em relação aos Estados Unidos e é legítimo defender a manutenção da “Europa Kantiana”. Não se pode é ter as duas posições ao mesmo tempo. Para a Europa, a principal consequência do “anti-americanismo” será o fim da ordem política “republicana” que tem garantido a segurança sem cair na tirania e que tem preservado a liberdade sem regressar à anarquia. Se os europeus quiserem continuar a gozar desta extraordinária “obra de arte”, que lhes dá simultaneamente liberdade e segurança, construída na Europa desde o final da Guerra, têm que aceitar a hegemonia americana e manter a aliança atlântica. Só os utópicos é que não aceitam esta realidade. E as utopias, como demonstra a História da Europa, normalmente levam ao desastre.
João Marques Almeida, Instituto Português das Relações Internacionais

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