11 dezembro 2012

E Óscar tinha razão

 Por que persistirá em nós a lembrança de certas criaturas com quem, feitas as contas, pouco privámos, em verdade mal conhecemos, e pouco ou nada nos influíram, – e se esvai a de outras que nos foram muito mais efectivas, senão decisivas?     

Foi não sei há quantos anos, numa noite de sábado como tantas outras, ao balcão dessa tasca da Rua da Atalaia, a Leitaria Belita (Tasca Azul para os não iniciados), que por assim dizer tropecei em Fraulein Dorit Slaby, berlinense incógnita que desbastava a poder de abafadinho os momentos inaugurais de uma pândega que ela prometera a si mesma. No estabelecimento taberneiro, as conversas cruzavam-se habitualmente com a naturalidade de um cruzar pernas, e já não sei precisar de que forma o nosso grupo, já algo mais avinhado do que permitiria a ética protestante e luterana, chegou à conversa com Dorit, o que em tais conjunturas faz parte do protocolo da noite ou noitada e, como diz o francês, va de soi.

Uma ressaca e poucos dias volvidos, seríamos uns quantos reunidos num apartamento o seu tanto escalavrado, também no Bairro Alto, precisamente na Rua da Rosa (de camiliana memória: nasceu ali o «bruxo de Seide», o que se pode figurar algo inesperado a quem o associe principalmente aos sertões e fidalgotes nortenhos; mas a verdade raro é verosímil, e, sendo berço a um príncipe da boémia e das letras, parece que já então o Bairro se preparava para ser o que hoje é…), prontos para receber a sua lição gratuita de alemão, e donde havíamos de sair sempre com a roupa e cabelos polvilhados do estuque que ia caindo do tecto qual neve no Monte Branco, e perplexos e piscos por entre bárbaras declinações teutónicas.

A personalidade e figura excêntrica desta pequena alemã, combinada com um percurso pessoal atribulado, despertavam-me vagas reminiscências de não sabia eu que personagem literária, paralelo que durante anos não logrei apurar. Nada se lhe conhecia de seu, e muito provavelmente nada possuiria dos burguesmente chamados bens da fortuna: ganhara uma televisão em certo sorteio, que vendeu imediatamente para subsistir em Portugal durante uns meses. E vagueara um pouco por todo o mundo, dos arrozais cambodjanos às florestas finlandesas, sempre à custa de expedientes tais e quejandos.

Não obstante, a sua postura perante a vida e os outros antes se diria francamente aristocrática. Sem horas certas para nada, cultivava um total desprendimento dos compromissos assumidos. Desprezava toda a ambição que fosse além do dia seguinte, do próximo bródio. Depois de partir, jamais escreveu a alguma das suas amizades, apesar das facilidades oferecidas pelo correio electrónico, mas igualmente sem que ninguém lhe guardasse rancor por isso, até ao dia de hoje.

A pouco e pouco, na correnteza de algumas visitas a Berlim, fomos-lhe sabendo a infância, passada no Bloco de Leste, o padrasto polaco, o câncro vencido, um maxilar reconstruído, etc. Enfim, um vale mais de lágrimas do que de rosas.
Até que lhe perdemos o rasto…

Dizia eu mais acima que durante muito tempo não atinei com a criatura livresca que esta rara avis in terra me evocava. Foi então que este desaparecimento súbito acabou de me restituir a figura inefável de Holly Golightly, personagem igualmente mirífica, a transcender a realidade da sua condição impressa no livro do primoroso Truman Capote (Ao Começo do Dia, no orig. Breakfast at Tiffany’s) e a materializar-se ante os meus olhos na figura intangível e fugaz da amiga alemã!

          Afinal, existem, ou, como diria, e aliás disse, o grande Wilde: «Life imitates Art far more than Art imitates Life… Life holds the mirror up to Art, and either reproduces some strange type imagined by painter or sculptor, or realizes in fact what has been dreamed in fiction.»


3 comentários:

Anónimo disse...

E de repente aparece uma lufada de ar fresco! Não o conheço, Luiz de Mont André, mas julgo que este blogue passou a ganhar com a sua presença. Se continuar assim, traz aos Açores perspetivas novas da cultura. A Mariana Matos, aparentemente tao inteletual naquilo que escreve, vai começar a correr as livrarias para descobrir o que por aqui for desvendando.

saudações açorianas

Anónimo disse...

Obrigado.
Vamos continuando.
-Luiz de Mont'André

Anónimo disse...

Obrigado.
Vamos continuando.
-L. de M.