09 março 2017

PASMA O REI E PASMA O POVO


A un Caballero que, estando
com una dama, no pudo cumplir
sus deseos

Com Marfisa en la estacada
entraste tan desguarnido
que su escudo, aunque hendido,
no pudo rajar tu espada.
!Qué mucho, si levantada
no se vio en trance tan crudo,
ni vuestra vergüenza pudo
cuatro lágrimas llorar,
siquiera para dejar
de orín tomado el escudo!
D. Luís de Góngora


Desedifica-me, para não dizer mais e pior, ver um roto encartado a zombar de um cavalheiro esforçado, suposto que menos feliz em trabalhos de amor baldados – sim, love’s labour’s lost, para o dizer com o bardo. Ora, reza a crónica bilhardeira daqueles tempos que D. Luís nem com três quilos de viagra no bucho faria melhor que o cavalheiro da décima, e no entanto zomba. Exemplo nada exemplar!
Serve o poema para introduzir um livrinho simpático, pequeno, com menos de 200 páginas, capa de fundo azul muito escuro, encimada pelo nome do seu autor, seguido, logo abaixo, do título: Crónica do Rei Pasmado. E a figura de uma mulher nova despida, deitada em uma cama pousada num chão de quadrados brancos e cor-de-rosa, com um anjinho deitado sobre uma nuvem à cabeceira, e a cauda do mafarrico aos pés do leito.
O seu autor, Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999), foi professor, romancista, crítico literário e teatral, dramaturgo e jornalista espanhol, autor dos romances, entre muitos, La Princesa Durmiente va a la escuela, La muerte del decano, Crónica del Rey pasmado, de peças de teatro como El retorno de Ulises e Republica barataria, de ensaios como El Quijote como juego. Vencedor do Prémio Príncipe das Astúrias de Letras, do Prémio Nacional da Narrativa e do Prémio Cervantes, foi um dos mais importantes escritores espanhóis do século XX.
Passa-se o conto em Espanha, na Madrid do Siglo de Oro, por volta do ano de 1624, em Outubro, reinava então Filipe IV (III de Portugal), que representaria os seus 20 anos. Estranhos sucessos ocorrem, visões de bruxas e dragões sulfurosos, pressente-se algo anormal no ar. El-rei passou a noite com Marfisa, bela cortesã daquele século; acompanha-o o conde da Peña Andrada, corsário galego, recentemente chegado à corte, mas que ninguém conhece muito bem e que mais tarde se descobre ser o mafarrico em pessoa. El-rei, moço inexperiente e recém-casado, com pouco conhecimento do mundo e sem nunca ter enxergado ou surpreendido mulher nua, fica fascinado com a visão esplendorosa do corpo de Marfisa. Passou o resto do dia aluado e manifestou, na missa, o desejo de ver a rainha também nua.
Escândalo dos escândalos: nunca se vira tal na corte dos reis mui católicos. Padre Villaescusa, frade capuchinho, sujeito tenebroso que mistura o zelo beato com a ambição de ser o próximo Grande Inquisidor (sim, uma espécie de frei Anacleto Louçã dos nossos tempos), encabeça a reacção que vê no desejo do rei um grave pecado e um perigo para a estabilidade do Estado. Anuncia pois com grande espavento que os pecados dos reis, até os privados, recaem sobre os seus povos. El-rei, coitado, depois de ver Marfisa in naturalibus, ficou pasmado sem pensar noutra coisa durante… o resto do livro e, a fazer fé na História, até durante o resto da vida: 19 filhos entre legítimos e ilegítimos.
Reúnem-se conselhos de sábios reverendos dirigidos pelo Grande Inquisidor para determinar se é ou não lícito o desejo do rei, preocupa-se o valido, o conde-duque de Olivares com a alteração da ordem pública... A bem da verdade, além das preocupações públicas, o valido tinha a sua preocupação muito particular: posto que amantíssimo de sua esposa, não conseguia que o esforço frutificasse em descendência, o que assaz o desgostava, pois não queria deixar a fazenda a primos e parentes ou aderentes quando se fosse desta.
Marfisa, a bela odalisca, é perseguida pela Santa Inquisição, consegue fugir, avisada que foi a tempo pelo recado do Grande Inquisidor, homem cordato e nonchalant, com grande conhecimento do mundo, e que faz o menos possível em matéria da perseguição de hereges e afins. Refugia-se aquela beldade num convento de monjas, cuja superiora é da aquela do Grande Inquisidor. Complica-se o enredo, no conselho de sábios dividem-se as opiniões; o grupo que defende que os reis, como toda a gente, das suas portas adentro podem fazer o que quiserem em matéria de intimidades conjugais, é conduzido pelo padre Almeida, jesuíta português, em trânsito para Londres, onde se espera seja martirizado, e que (vem a saber-se ao diante) é um anjo, contraponto do mafarrico, conde de Peña Andrada.
A intriga adensa-se, as posições estremam-se, conspiram uns para proporcionar aos reis uma noite de amor sossegada, ou, senão sossegada, ao menos sem interferência de importunos e, no literal e metafórico, desmancha-prazeres; outros, com o padre Villaescusa à cabeça, querem a todo o custo impedir os reis de pecar…
Curiosamente, nesse mundo de fantasia, o anjo e o mafarrico concorrem no auxílio aos reis e seu gáudio!
É um livro amável, que trata de assuntos sérios de forma irónica, retrata um mundo em que anjos e demónios falam cordialmente e colaboram entre si para coadjuvar amantes contrariados; um livro que apela para a bondade e tolerância, e condena o zelo e o fanatismo. E, se de alguma coisa se dá pela falta hoje neste Portugal e PREC morno em que vivemos – com o politicamente correcto a grassar cada vez mais grosso e grosseiro neste mundo da bempensância modernaça, mais informatizado do que informado, e em versão cada vez menos soft das velhas e relhas censuras puras e duras – é de bondade e tolerância, e de um pouco de honestidade.
Mas desde muito que os empregos andam escassos, e a legião de controleiros de serviço carece de serventia para mais.

      Ficai-vos embora, e sem passar a vida a ressentir e cultivar a última palavra dos Lusíadas.  

1 comentário:

Anónimo disse...

livro amável por causa do roto encartado ou simplesmente porque se lê?